Se não fosse o surto de COVID-19, o bem-sucedido musical da Broadway "Hamilton" embarcaria em sua quarta temporada neste outono. Em vez disso - para o deleite dos fãs e espectadores ansiosos - uma versão do musical em filme, com os membros originais do elenco, começará a ser transmitida esta semana no Disney+, mais de um ano antes da data original de lançamento nos cinemas. O que antes estava disponível apenas a quem tinha acesso ao teatro e dispunha de um dinheiro extra agora está chegando a uma tela perto de você.

A estréia de "Hamilton" nas telas também é digna de ser notada porque chega em um momento de elevada agitação social nos Estados Unidos. Muitas pessoas estão ansiosas ou com raiva da injustiça racial, da brutalidade policial e da política hiperpolarizada. Para o pastor e plantador de igrejas Kevin Cloud, o show - com sua visão moral e suas inovações artísticas - oferece um ponto de vista inestimável tanto sobre o momento atual quanto sobre nossas responsabilidades cristãs neste período. Cloud, autor de "God and Hamilton: Spiritual Themes from the Life of Alexander Hamilton and the Broadway Musical He Inspired", dirige oficinas sobre fé e criatividade em todo o país com base em seu livro. A escritora Sarah Arthur conversou com Cloud sobre o uso de "Hamilton" para explorar a interseção entre fé, artes e mudanças sociais.

Por que essa história sobre uma figura histórica distante ganhou tanto sentido?

Eu não acho que alguém poderia imaginar como esse musical catapultaria Alexander Hamilton de um esquecido pai fundador dos Estados Unidos para um ícone cultural. Diversas dinâmicas diferentes trabalharam juntas, criando uma profunda ressonância em nossa cultura.

Antes de tudo, "Hamilton" é uma extraordinária obra de arte. Ganhou 11 prêmios Tony, em 2016, incluindo o de melhor musical, e um Prêmio Pulitzer de teatro. Eu concordo com Michelle Obama, que a chamou de “a melhor obra de arte que eu já vi na minha vida”. Como uma recontagem multirracial da história, é verdadeiramente uma obra genial.

"Hamilton" também ressoa porque a história se cruza com uma série de questões sociais críticas de nossos tempos, incluindo imigração, raça, igualdade de gênero e diversidade. O próprio Hamilton era um imigrante do Caribe e um tema importante em todo o musical é a batalha de Hamilton por dignidade e igualdade. Vemos exatamente essa mesma batalha ser travada nos protestos que ocorrem em nosso país atualmente.

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De forma mais ampla, a história se concentra em temas fundamentais da experiência humana: graça, perdão, fracasso, morte e redenção. Observar esses temas no palco nos dá esperança, nos desafia e mostra possibilidades de como nossas vidas poderiam ser. Enquanto viajava pelo país falando sobre meu livro, ouvi inúmeras histórias de pessoas que disseram que assistir a "Hamilton" mudou sua vida.

O jogador de basquete da NBA Josh Hart disse que assistir a "Hamilton" na Broadway o desafiou e lhe deu uma nova perspectiva: “Às vezes, quando você está tão envolvido com o seu mundo, não vê outras coisas. Portanto, é ótimo ver outras pessoas no mundo delas, pegar os temas [...] de ‘Hamilton’ e aplicá-las ao seu mundo.”

Existem muitos temas espirituais na narrativa de Lin-Manuel Miranda - por exemplo, na música de despedida de George Washington, “One Last Time”, em que ele cita Miqueias 4.4. Como as igrejas podem interagir com a versão em filme para desencadear conversas sobre a fé?

Depois de assistir ao musical, li tudo o que pude sobre Hamilton, incluindo a biografia de Ron Chernow, que inspirou o musical. Aprendi que os grandes temas do evangelho realmente estavam no centro da vida de Hamilton. Hamilton praticou uma fé sincera e autêntica ao longo de grande parte de sua vida. Ela floresceu quando ele era jovem, no Caribe. Ele escreveu hinos poderosos em sua juventude, que articulam um conhecimento íntimo da vida com Deus. Um hino, “The Soul Ascending into Bliss”, diz:

Ouça! Ouça! Uma voz de além do céu; acho que ouço meu Salvador chorar; venha gentil espírito, venha para o seu Senhor sem demora.

Quando Hamilton chegou à cidade de Nova York, na adolescência, estudou no King’s College e participou dos seus movimentos de devoção religiosa. Ele frequentava, diariamente, a capela, pela manhã, as orações, à noite, e os cultos da igreja duas vezes, no domingo. Seu colega de quarto certa vez registrou em seu diário sobre o fervor das orações de Hamilton.

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No entanto, Hamilton também passou por épocas de afastamento da devoção religiosa. Sua esposa, Eliza, provavelmente era mais dedicada, enquanto Hamilton parece ter experimentado alterâncias entre fé autêntica e dúvida genuína. Vemos essa luta na poderosa música “It’s Quiet Uptown”, que mostra Eliza e Alexander enfrentando a morte de seu filho mais velho, Philip, que foi baleado e morto em um duelo que Philip iniciou para defender a honra de seu pai. Alexander canta: “Eu levo as crianças para a igreja no domingo / Um sinal da cruz na porta / E eu oro / Isso nunca acontecia antes.” A luta entre fé e dúvida pode nos encorajar, à medida que enfrentamos, nós mesmos, épocas de altos e baixos em nossa vida.

"Hamilton" também conta a história de um homem que empreende uma iniciativa notável. Na letra mais famosa do musical, Hamilton declara: “Não estou jogando fora minha oportunidade”. Essa fala poderia ter sido o mantra de sua vida. Ele chegou aos Estados Unidos no início da revolução, como um estudante universitário pobre e imigrante. Menos de vinte anos depois, ele se tornou o segundo homem mais poderoso dos recém-formados Estados Unidos. A notável trajetória de Hamilton poderia ser explicada com mais precisão por sua intensa tendência a tomar iniciativa. Quando os cristãos se comportam como se não pudéssemos superar grandes desafios, como os sistemas existentes, a história de Hamilton nos desafia a ver nossas circunstâncias de maneira diferente.

Em um workshop de "Deus e Hamilton" que conduzi com estudantes do ensino médio, uma garota me contou sua história. Ela decidiu concorrer ao conselho estudantil. Porém, quase desistiu no último minuto, porque tinha pavor de discursar para seus colegas e temia o potencial embaraço de não ganhar a eleição. Mas, então, ela pensou em Hamilton e decidiu que não iria jogar fora sua oportunidade.

A notável esposa de Alexander, Eliza, lutou para perdoar o marido por seu caso extraconjugal com uma mulher chamada Maria Reynolds, que se tornou de conhecimento público e se transformou no primeiro escândalo sexual do país. Eliza acabou perdoando Alexander em um dos momentos mais poderosos do musical. O coro canta: “Perdão. Você pode imaginar?” Nesse momento, você pode sentir a atmosfera no teatro mudar. Cada um de nós deve decidir se o exemplo de Eliza nos inspirará a perdoar aqueles que nos machucaram.

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O criador de "Hamilton", Lin-Manuel Miranda, diz que esses momentos, que ele chama de “momentos de ação”, são um de seus aspectos favoritos do teatro ao vivo. Assim como as parábolas de Jesus, essas cenas nos confrontam e exigem uma resposta. "Hamilton" está cheio desses momentos de ação.

Em uma igreja em que palestrei, uma mulher se aproximou de mim depois do meu sermão e me disse que "Hamilton" salvou sua vida. Certa noite, em particular, ela ouviu a trilha sonora de Hamilton enquanto pensava seriamente em suicídio. Quando ela ouviu George Washington cantar: “Morrer é fácil, jovem / Viver é mais difícil”, algo mudou dentro dela. Ela percebeu que tirar a vida seria a saída mais fácil - que o caminho mais difícil era escolher viver. Deus usou a história para literalmente salvar a vida dessa mulher.

Como pastor e músico, você vê o envolvimento com as artes e a criatividade como um ato de adoração. Você pode elaborar sobre isso?

As Escrituras nos dizem que somos feitos à imagem de um Deus criativo. Vemos essa verdade desde o primeiro capítulo de Gênesis, onde a primeira coisa que aprendemos sobre Deus é que ele cria. Mais adiante, no mesmo capítulo, o texto nos diz três vezes que somos feitos à imagem de Deus, enfatizando nosso chamado para criar. Gênesis 2 reforça esse chamado, pois Deus convida a humanidade a fazer parceria com ele no processo criativo, nomeando os animais. Acredito que Deus convida continuamente cada um de nós para essa parceria criativa, hoje. Toda vez que empreendemos um ato criativo ou realizamos uma reflexão ponderada sobre o trabalho criativo, cumprimos nosso chamado para viver de forma criativa. Atender a esse chamado nos torna mais vivos e, no processo, traz glória a Deus.

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Toda vez que criamos, fazemos algo que possui um potencial quase inimaginável para o bem. Quando apresento minha oficina sobre criatividade e fé, os participantes compartilham histórias sobre como os atos criativos transformaram sua vida e a vida daqueles que experimentaram seu trabalho. Um estudante universitário disse a seus colegas de classe que ver um filme sobre Jackie Robinson o ajudou a encontrar perspectiva em uma estação sombria da vida, quando ele sofreu bullying intenso. Uma mulher compartilhou em lágrimas que aceitar um cargo como líder de louvor em uma igreja lhe trouxe o maior senso de realização e propósito que jamais experimentara. Uma mãe que fica em casa, sobrecarregada com a criação de seus filhos, ganhou vida novamente quando começou a fotografar. Cada uma dessas pessoas experimentou a verdade de que a criatividade nos ajuda a nos tornarmos mais plenamente vivos.

"Hamilton" lança mão de diversos gêneros artísticos, incluindo hip-hop, rap e poesia recitada em um palco da Broadway, e também inclui pessoas negras nos papéis de pais fundadores dos Estados Unidos. Qual é o objetivo das comunidades religiosas ao se engajar nas artes?

A igreja ganha muito ao se engajar nas artes. Especificamente, as artes podem nos conduzir no ato crítico de imaginar respostas criativas em tempos de agitação nacional.

Trazer o hip-hop para a Broadway foi uma jogada arriscada e sem precedentes, mas forneceu o gênero perfeito para um musical sobre a Revolução Americana: um movimento de e para pessoas do lado de baixo do poder. A escolha de atores negros como os pais fundadores foi outra decisão imaginativa que inverte as expectativas e desafia o público a se abrir para novas possibilidades. Christopher Jackson, que interpretou George Washington no elenco original da Broadway, disse: “Ter um elenco multicultural, nos dá, como atores negros, a chance de fornecer um contexto adicional apenas pela nossa presença no palco interpretando esses personagens”.

O que aconteceria se as comunidades religiosas experimentassem formas, gêneros e maneiras de dialogar incomuns a fim de criar novas músicas, comunicar-se de maneiras inesperadas ou se envolver sem medo em narrativas culturais do lado de baixo do poder?

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Por exemplo, eu trabalho como diretor de vida espiritual na Culture House, um conservatório de artes religiosas em Kansas City. Temos uma companhia de dança profissional, a Störling Dance Theatre, que vem realizando um show chamado "Underground" nos últimos quinze anos. O show conta a história da Underground Railroad e destaca o papel da igreja na libertação de escravos.

A cada ano, o fato de líderes da igreja e da comunidade assistirem a essa história nos palcos alimenta sua imaginação. Essas apresentções levaram a inúmeros exemplos de construção de pontes entre pessoas de diferentes raças em nossa cidade. A história ajuda os líderes municipais a imaginar como podemos buscar melhor a reconciliação racial em nossos dias. Existe alguma questão mais importante com que os líderes religiosos precisam lidar atualmente?

Você defende que a opinião de Miranda sobre a vida de Hamilton é, em última análise, sobre perdão e esperança, apesar da tragédia implacável, cena após cena. Como podemos olhar para esta história em busca de sinais de esperança em meio à nossa própria agitação nacional?

O musical contribui para um grande drama, já que Hamilton experimentou tanto desgosto. Seu pai deixou sua família quando menino e sua mãe morreu alguns anos depois. Ele se juntou à Revolução Americana logo após chegar aos Estados Unidos e enfrentou os horrores inimagináveis da guerra. Ele ingressou em um dos mais altos cargos do país, mas, depois, se tornou um pária político. Ele perdeu o filho em um duelo de honra - e perdeu a própria vida da mesma maneira. No entanto, diante de toda essa tragédia, Hamilton finalmente conta uma história de redenção.

Grande parte da dor e do sofrimento da vida de Hamilton se originou de seu status de órfão, uma realidade que o assombrava. Hamilton, como muitos órfãos, certamente cresceu se sentindo abandonado, indesejado e não amado. Em suas cartas particulares, o vemos lutar com a solidão e a inadequação.

Eu posso imaginar conversas comoventes em que Hamilton compartilhou sua dor e seu sofrimento com a esposa, Eliza. Gosto de imaginar Eliza com um profundo sentimento de empatia pelas lutas de Hamilton, como qualquer cônjuge amoroso. Os fardos de Hamilton devem ter se tornado seus fardos também. Depois que o então vice-presidente Aaron Burr atirou e matou seu marido no campo de duelos, Eliza pegou esses fardos e deu tudo o que podia para redimi-los.

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Quando Eliza se recuperou lentamente de sua dor, ela descobriu um novo chamado. Ela estabeleceu parceria com um pequeno grupo de mulheres para fundar o primeiro orfanato privado na cidade de Nova York. Ela trabalhou para aliviar o sofrimento de órfãos que enfrentavam desafios, como o marido havia enfrentado.

A cena final do musical de Miranda apresenta uma das mais poderosas representações artísticas de redenção que já testemunhei. Na música final, Eliza canta sobre o orfanato: “Ajudo a criar centenas de crianças / as vejo crescendo / nos olhos delas vejo você, Alexander / sempre vejo você.” O musical termina com um holofote branco brilhando no rosto de Eliza, enquanto ela olha para o céu e sorri, seu rosto explodindo de alegria enquanto a luz se apaga.

O orfanato que Eliza fundou existe ainda hoje, com o nome Graham Windham. Jess Dannhauser, presidente e CEO, diz que “[...] quando Eliza canta dizendo que vê Alexander nos olhos desses órfãos, imagino como se fosse ela dizendo que essas crianças têm um grande potencial dentro delas. Esse espírito anima nosso trabalho, hoje.”

Eliza pegou a maior fonte de dor de Alexander e, de alguma forma, a tornou bonita, que é exatamente o que Deus faz na vida de todos nós. Às vezes, nosso mundo se sente oprimido por escuridão, sofrimento e tragédia. Mas a promessa do evangelho é que, de alguma forma, Deus eventualmente tornará tudo bonito. Que Deus levará nossa dor e nosso sofrimento e os redimirá. Nosso papel como igreja é falar e viver essa palavra de esperança e redenção, não apenas como uma resposta à mudança social, mas como um catalisador.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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