Na sexta-feira à tarde, eles o tiraram da cruz, tão morto quanto um homem pode estar. Na tarde de domingo, ele caminhou a maior parte dos 11 quilômetros de Jerusalém a Emaús na companhia de dois de seus discípulos. Ele havia rompido a barreira da morte e estava vivo, bem, e mais uma vez de volta ao planeta Terra. Por 40 dias, antes de se retirar para a glória onde agora vive e reina, ele apareceu para seus seguidores e amigos. Por quê? Porque os amava e queria que tivessem a alegria de vê-lo vivo; porque ele tinha de explicar a eles sua conquista da salvação e o papel deles como suas testemunhas; e, por último, mas não menos importante, porque alguns deles estavam em angústia emocional e espiritual e precisavam dessa terapia que era exclusiva dele. Tudo isso se reflete na história do Caminho de Emaús (Lucas 24.13–35).

Quem eram os pacientes a quem o médico dos médicos ministrou ali? Um deles era Cleopas (v. 18). A outra pessoa, não nomeada por Lucas, vivia com Cleopas, e é natural supor (embora não seja possível provar) que era Maria, esposa de “Clopas” (João 19.25) e mãe de Tiago (Marcos 15.14), que estava perto da cruz quando Jesus morreu. (Nesse caso, Cleopas era Alfeu, o pai de Tiago.) Devo presumir que eram marido e mulher caminhando para casa naquele dia. Eles seguiam devagar — a maioria das pessoas segue nesse ritmo em longas caminhadas —, e estavam compartilhando sua perplexidade e dor pela morte de Jesus. Seus espíritos estavam muito abatidos. Eles pensaram que haviam perdido para sempre seu Mestre tão amado; e sentiam que seu mundo havia perdido o chão. Estavam em choque pela experiência do luto, e sofrendo muito.

Agora, imagine a cena. De trás deles, surge um estranho andando mais rápido, que passa a acompanhá-los na caminhada. Naturalmente, eles param de discutir sua miséria particular, e ficam em silêncio. Quando sabemos que a dor está estampada em nosso rosto, evitamos olhar para as outras pessoas, pois não queremos que ninguém olhe para nós; assim, imagino que esse casal tenha virado o rosto, sem encarar de frente seu companheiro de viagem. Certamente, “os olhos deles foram impedidos de reconhecê-lo” (v. 16), de modo que se alguém lhes perguntasse “Jesus está com vocês?”, a resposta teria sido: “Não seja bobo, ele está morto, nós o perdemos, esperávamos que fosse ele quem redimiria Israel, mas claramente não foi; não o veremos de novo — e nada mais faz sentido”.

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Pare! Olhe! Ouça! Aqui está um exemplo perfeito de um tipo de perplexidade espiritual que (atrevo-me a afirmar) todo filho de Deus experimenta, cedo ou tarde. Esteja avisado: pode ser uma experiência terrivelmente dolorosa e, se você não estiver preparado para enfrentá-la, pode deixá-lo amargurado, mutilá-lo emocionalmente e, em grande medida, destruí-lo — o que, diga-se, é o objetivo de Satanás nisso, todas as vezes. O que acontece é que sente que Deus está brincando de gato e rato com você. Tendo levantado você, ao lhe dar esperança, ele agora o derruba, ao destruí-la. Aquilo que ele lhe deu como apoio, ele de repente tira, e você cai. Seus sentimentos dizem que ele está brincando com você: que deve ser um brutamonte cruel e malicioso, afinal. E então, você se sente destroçado, o que não é de admirar.

Exemplos disso são fáceis de encontrar. Imagine um obreiro cristão, talvez um leigo, talvez um ministro, que assume uma tarefa (pastorear uma igreja, liderar uma classe, começar um novo trabalho ou qualquer outra coisa do tipo), confiante de que Deus o chamou e esperando, portanto, colher bênçãos e frutos. Mas tudo o que vem é decepção e frustração. As coisas dão errado, as pessoas agem com perversidade, a oposição cresce, alguém é decepcionado pelos colegas, o campo do ministério se torna uma área de desastre. Ou, pense em um casal que se casa no Senhor para servi-lo juntos, que dedicam sua casa, suas posses e, no devido tempo, seus filhos a ele, e, ainda assim, só encontram problemas: problemas de saúde, problemas financeiros, problemas com parentes e sogros, e talvez (a coisa mais amarga de todas) problemas com os próprios filhos. O que machuca mais os pais cristãos do que verem os filhos que tentaram criar para Deus dizerem "não" ao cristianismo? Mas não diga que coisas assim nunca acontecem a pessoas verdadeiramente fiéis; você sabe perfeitamente que acontecem. E quando acontecem, a dor é aumentada pela sensação de que Deus se voltou contra você e está agindo de forma a destruir as esperanças que ele próprio um dia lhe deu.

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Há cerca de 30 anos, a filha de um sacerdote sentiu-se atraída por um jovem. Ela era cristã; o jovem não era. Ela fez o que as garotas cristãs devem fazer nessas ocasiões: ela se continha e orava. Ele se converteu e eles se casaram. Logo o homem, que era um fazendeiro bastante próspero, sentiu-se chamado a vender tudo o que tinha e preparar-se para o pastorado. Ele mal tinha começado seu ministério, entretanto, e morreu dolorosamente de câncer, deixando a viúva com um filho pequeno e sem dinheiro. Hoje ela tem um ministério voltado a pessoas que, sem aquela experiência, ela nunca teria. No entanto, ela sempre tem de lutar contra sentimentos que dizem: “Deus brincou comigo; ele me deu esperanças e as destruiu; ele é cruel; ele é perverso”. Eu imagino que ela vá lutar essa batalha [contra esses sentimentos] até o dia em que morrer. Essas coisas acontecem e machucam.

Veja nas Escrituras. O adolescente José, o mais jovem da família, recebe sonhos nos quais é o chefe do clã. Furiosos, seus irmãos o vendem como escravo para garantir que isso nunca aconteça. José está se saindo bem no Egito, como braço direito de um importante militar e político. A dona da casa, talvez se sentindo negligenciada pelo marido, como às vezes as esposas de militares e políticos se sentem, quer levar José a ter relações com ela. José diz não, e essa rejeição vinda de um mero escravo transforma a luxúria da senhora em ódio (uma transição que nunca é difícil), de modo que ela mente sobre ele, e de repente ele se encontra definhando na prisão, desacreditado e esquecido. Lá ele fica por alguns anos, um condenado modelo, segundo nos é dito, mas sem perspectivas e sem nada para ocupar seus pensamentos, senão os sonhos de grandeza que Deus uma vez lhe deu. E assim foi “até cumprir-se a profecia a respeito dele, e tê-lo provado a palavra do Senhor” (Salmos 105.19). “Tê-lo provado” — sim, e como! Podemos duvidar que, na prisão, José teve de lutar constantemente contra o sentimento de que o Deus que lhe dera esperanças agora estava trabalhando duro para destruí-las? Podemos supor que ele achou fácil confiar em Deus e permanecer calmo e dócil?

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A dolorosa perplexidade das esperanças dadas por Deus que são aparentemente destruídas por circunstâncias ordenadas por Deus é uma realidade para muitos cristãos de hoje, e será a experiência de ainda mais cristãos do amanhã — assim como foi para José e para os discípulos a caminho de Emaús. Voltemos agora a essa história, para vermos o médico dos médicos operando neles.

Bons médicos mostram sua excelência primeiramente pela habilidade em fazer diagnósticos. Eles não apenas aliviam sintomas, mas vão à raiz do problema e tratam dele. O que Jesus viu como a raiz da angústia desse casal? Em seu trato com eles, Jesus mostra que seu diagnóstico foi de incredulidade, e causada por duas coisas.

Primeiro, eles estavam muito decepcionados — chateados demais para pensarem direito. Estava acima de suas forças somar dois e dois. Eles passaram rapidamente da decepção para a angústia, da angústia para o desespero, e do desespero para o que chamamos de depressão, a mais comum das doenças do século XX, em razão da qual um em cada quatro norte-americanos precisa ser tratado com medicamentos em algum momento da vida. Se você já passou por uma depressão ou procurou ajudar suas vítimas, sabe que as pessoas em depressão são incrivelmente engenhosas em encontrar razões para não receberem conforto, encorajamento nem esperança no que quer que você lhes diga. Elas sabem que você tem boas intenções, mas desafiam seus esforços; distorcem tudo em outras razões pelas quais devem ser tristonhas e sem esperança (“está tudo bem para você, mas é diferente para mim”, e assim por diante). Elas estão decididas a ouvir tudo como uma má notícia. Isso é exatamente o que encontramos aqui, na narrativa de Cleopas sobre o sepulcro vazio. (Tem de ser Cleopas [quem fala] neste momento; Maria não estaria falando com um homem estranho, e a história é contada de uma maneira muito masculina.)

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“E hoje é o terceiro dia desde que tudo isso aconteceu”, diz Cleopas. “Além disso, algumas das mulheres entre nós nos deram um susto hoje. Foram de manhã bem cedo ao sepulcro e não acharam o corpo dele. Voltaram e nos contaram que tinham tido uma visão de anjos, que disseram que ele está vivo. Alguns dos nossos companheiros foram ao sepulcro e — [surpresa! surpresa!] — encontraram tudo exatamente como as mulheres tinham dito, mas não o viram”(v. 22–24). (Implicação: nesse relato descomedido, não há nada sobre Jesus estar vivo; alguém deve ter profanado o sepulcro e roubado o corpo, para lhe negar um enterro decente.) Assim, Cleopas anuncia o sepulcro vazio como uma má notícia a mais.

No entanto, repetidas vezes antes de sua paixão, Jesus havia predito não apenas sua morte, mas também sua ressurreição no terceiro dia (Lucas 9.22; 18.33; Mateus 16.21; 17.23; 20.19). À luz dessas previsões, o raciocínio lógico diante da notícia do sepulcro vazio teria feito seus corações saltarem de alegria. “Ele disse que ressuscitaria; agora o sepulcro está vazio; ele ressuscitou, ele ressuscitou, ele ressuscitou!”. Mas ambos estavam muito chateados para pensarem direito.

Isso se devia à raiz de sua incredulidade, que Jesus também diagnosticara, a saber, o fato de que eles eram muito ignorantes — ignorantes demais a respeito das Escrituras. “Como vocês custam a entender” — o tom de Jesus é compassivo, não desdenhoso: “Como vocês são tolos, meus queridos” seria o tom aproximado que ele usou — “e como demoram a crer em tudo o que os profetas falaram! Não devia o Cristo sofrer estas coisas, para entrar na sua glória?” (v. 25–26). Jesus passou talvez duas horas mostrando a eles nas Escrituras (memorizadas) que aquilo fora, de fato, necessário. Isso mostra como ele percebeu a necessidade fundamental deles.

Assim como a ignorância das Escrituras era o problema básico no Caminho de Emaús, muitas vezes também é o nosso problema. Os cristãos que não conhecem sua Bíblia ficam desnecessariamente perplexos e magoados porque não sabem como entender, à luz da Bíblia, o que lhes acontece. Esses dois discípulos não conseguiam entender a cruz de Jesus. E muitos não conhecem a Bíblia bem o suficiente para entender a própria cruz. O resultado é um grau de perplexidade e consequente angústia que poderiam ter sido evitados.

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Assim, ao diagnosticá-los, Jesus fez três coisas para curar a alma deste casal. Primeiro, ele fez o que todo conselheiro deve fazer: fez perguntas , fez com que falassem, estabeleceu um relacionamento e, assim, tornou-os receptivos ao que ele tinha a dizer. Sua estratégia inicial (“Sobre o que vocês estão discutindo?”, v. 17) extraiu de Cleopas apenas grosseria (“Você é o único visitante em Jerusalém que não sabe das coisas que ali aconteceram nestes dias?”, v. 18). Pessoas feridas muitas vezes agem dessa maneira, e externam seu sofrimento sendo muito grosseiras. Mas Jesus não se abalou; ele sabia o que estava acontecendo dentro de Cleopas, e insistiu em sua pergunta (“Eu não sei? Conte-me mesmo assim, deixe-me ouvir de seus próprios lábios”). Caso eles tivessem se recusado a compartilhar seus problemas, Jesus não poderia tê-los ajudado. Mas quando eles abriram seus corações para ele, a cura começou.

Então, em segundo lugar, Jesus explicou a Escritura — “expunha” a Escritura, para usar a palavra que eles usaram (v. 32) — na medida em que esta falava à sua perplexidade e à sua dor. Jesus mostrou a eles que aquilo que os estava deixando confusos — ou seja, a morte daquele que eles pensavam que os redimiria no sentido de acabar com a ocupação romana — havia na verdade sido profetizado, séculos antes, como a maneira de Deus redimir no sentido de acabar com o fardo e a escravidão do pecado. Ele deve ter citado Isaías 53, texto em que o servo que morre pelos pecados, nos versículos 1–9, aparece vivo, triunfante e reinando, nos versículos 10–12; ele citou muitas passagens que retratam o Messias de Deus caminhando para a coroa por meio da cruz, e manteve os dois discípulos em um estado de compreensão e entusiasmo crescentes (seus corações “estavam ardendo”, v. 32) até que chegassem em casa. Assim a cura prosseguiu.

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O princípio aqui é que a coisa mais curativa do mundo, para uma alma perturbada, é descobrir que o sofrimento — que produz sentimentos de isolamento, desesperança e ódio de gargalhadas alegres — é tratado na Bíblia de uma forma que mostra que, afinal, esse sofrimento faz sentido em termos de um propósito divino e amoroso. E você pode ter certeza de que a Bíblia, o manual de Deus para a vida, tem algo a dizer sobre todos os problemas que encontraremos na vida e que envolvem os caminhos de Deus. Então, se está sofrendo por causa do que sente que Deus fez a você, e não encontra nas Escrituras algo que fale para a condição em que se encontra, não é que a Bíblia agora esteja falhando com você, mas apenas que, assim como aqueles discípulos, você não a conhece bem o suficiente. Peça a cristãos mais sábios que exponham as Escrituras para você em relação à sua dor, e eu garanto que você descobrirá que é assim. (Para pegar emprestada uma frase de Ellery Queen — desafio ao leitor!)

Por fim, Jesus revelou sua presença. “Fique conosco”, disseram-lhe, ao chegar a Emaús. (Que bênção para eles que foram hospitaleiros! O que teriam perdido se não o fossem!) À mesa, pediram-lhe que desse graças e, quando o fez, e deu-lhes o pão, “os olhos deles foram abertos e o reconheceram” (v. 31). Se o reconhecimento foi desencadeado por verem marcas dos pregos em suas mãos, ou por se lembrarem da voz e do gesto idênticos a quando alimentou os cinco mil ou os quatro mil, como alguns se perguntam, não sabemos dizer, e não importa. Nem agora, nem então. As maneiras de Jesus tornar sua presença conhecida são mistérios da iluminação divina, sobre os quais raramente podemos dizer mais do que aquilo que foi dito, visto, lido ou lembrado — simplesmente aconteceu. Foi assim nesse caso; e assim a cura foi completada.

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Somente conheceremos sua ajuda quando deixarmos de lado o ressentimento e a autopiedade sem oração, e abrirmos nosso coração para ele.

Para deixar claro, no momento em que o reconheceram, ele desapareceu. No entanto, sabiam claramente que Jesus ainda estava com eles. Caso contrário, teriam eles se levantado da mesa, mesmo tão cansados, e corrido de volta a Jerusalém, durante a noite, para compartilhar essas novidades? Palestinos sensatos não caminhavam solitários pelas estradas rurais à noite, pois temiam bandidos e assaltantes (foi por isso que Cleopas e Maria encorajaram o estranho a ficar com eles). Mas é evidente que eles contavam com a presença protetora de seu Senhor, enquanto cuidavam dos interesses dele. “Fique conosco”, eles disseram, e intimamente sabiam que ele estava fazendo exatamente isso. Assim, seus corações partidos foram restaurados, e sua tristeza substituída por alegria.

Jesus Cristo, nosso Senhor ressurreto, é hoje o mesmo de ontem, e faz parte da verdadeira fé pascal levar a cura do Caminho de Emaús às nossas próprias feridas. Como? Primeiro, contando a Jesus o nosso problema, como ele nos convida a fazer todos os dias. Ele continua a ser um bom ouvinte, que possui aquilo que o hino chama de “sentimento de solidariedade por nossas dores”. Somente conheceremos sua ajuda quando deixarmos de lado o ressentimento e a autopiedade sem oração, e abrirmos nosso coração a ele. Em segundo lugar, levaremos a cura do Caminho de Emaús às nossas próprias feridas permitindo que ele ministre a nós com base nas Escrituras, relacionando o que nos causa dor ao propósito do amor redentor de Deus: isso significará regularmente buscar os agentes humanos do Senhor no ministério, bem como estudar a Bíblia sozinho. Terceiro, alcançaremos essa cura pedindo a ele que nos assegure de que, conforme passarmos pelo que nos parece ser fogo e dilúvio, ele vai conosco e ficará conosco até o fim da estrada. Essa oração ele sempre responderá.

“Não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se de nossas fraquezas, mas sim alguém que, como nós, passou por todo tipo de tentação, porém, sem pecado. Assim sendo, aproximemo-nos do trono da graça com toda a confiança, a fim de recebermos misericórdia e encontrarmos graça que nos ajude no momento da necessidade ”(Hb 4: 15-16, NVI). Assim escreveu um apóstolo, há muito tempo, para crentes maltratados, confusos e deprimidos. A história do Caminho de Emaús nos incentiva a fazer o que ele diz — e também nos mostra como.

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O teólogo e autor britânico J. I. Packer foi professor de Teologia Sistemática e Histórica no Regent College, em Vancouver, British Columbia, Canadá.

Traduzido por Eduardo Fettermann

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