Certa vez, tivemos uma discussão em particular que fará parte do nosso folclore familiar por gerações: os adultos, no andar de cima, atacavam uns aos outros com acusações em alta voz, enquanto as crianças, no andar de baixo, lentamente percebiam que o filme de Natal, planejado para a tarde, não aconteceria.

Anos depois, não consigo me lembrar dos motivos que levaram a esse conflito entre os membros da família. Só sei que as condições foram adequadas. A “época mais maravilhosa do ano” estava chegando e as expectativas estavam lá em cima.

Isso que chamamos de amor é um negócio bem arriscado. Infelizmente, no ambiente da nossa cultural atual — no qual a segurança pessoal é tão valorizada — temo que nos tornemos cada vez menos tolerantes às contusões normais que acontecem no esporte de contato das relações humanas. Amamos contanto que nunca nos machuquem.

Uma rápida olhada nas mídias sociais revela uma porção de conselhos para relacionamentos; todos são conselhos que se concentram na autoproteção. Somos ensinados a ficar vigilantes contra injustiças, a repudiar a toxicidade e a evitar situações que façam com que nos sintamos inseguros. A lei do “não passe deste ponto sem a minha permissão” tornou-se inviolável.

Para ser clara, celebro a crescente ênfase na questão da responsabilização. É bom e correto proteger as vítimas dos agressores, e saúdo as formas mais precisas com que passamos a nomear as violações da confiança humana. É importante ressaltar que o evangelho cristão nunca minimiza o trauma do pecado e a necessidade de reparação. Com um Messias crucificado em seu centro — um bode expiatório criado para sofrer pelos pecados do mundo — [o evangelho] é uma história que defende a necessidade de justiça.

Ainda assim, eu me preocupo com o fato de que as nossas expectativas para os relacionamentos humanos estão se tornando irreais. Buscamos segurança, conceito que para nós muitas vezes significa invulnerabilidade. Imaginamos que ser ferido em um relacionamento nos aponta motivos para desistir dele, e não os riscos típicos de um trabalho bem-feito.

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Nos últimos anos, a fratura relacional, especialmente nos Estados Unidos, tornou-se uma pandemia, e fica cada vez mais difícil trabalhar para restaurar relacionamentos em nossas amizades, famílias e igrejas. Com a crescente desconfiança em relação às instituições, temos menos autoridades para arbitrar os conflitos. Numa era digital que promove que cada um escolha a própria “verdade”, reafirmamos diferentes formas de ver o mundo, e até mundos completamente diferentes.

Isso para não falar desse espírito reinante de inquietação, que os pais e as mães do deserto chamavam de acédia [tristeza ou melancolia profunda]. Ficamos incomodados com o esforço que a resolução de conflitos exigirá de nós — e ficamos resistentes às exigências do amor, como definiu Rebecca DeYoung.

Como parece claro na Bíblia, o conflito é um aspecto inevitável das relações humanas e uma realidade que exige sabedoria. Se o conflito fosse mais raro, e não algo comum, poderia parecer que Paulo exagerou, quando falou sobre a necessidade de rejeitarmos pecados como “ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja” e, em vez disso, praticarmos “amor, alegria, paz, paciência, amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio” (Gálatas 5.20-23).

Se o conflito fosse a exceção, e não a regra, talvez o próprio Jesus tenha exagerado, quando disse que o perdão nas relações humanas é uma decisão perseverante de perdoar “setenta vezes sete” (Mateus 18.22).

Mas não, essas determinações persistentes para as pessoas se darem bem umas com as outras (veja o apelo de Paulo a Síntique e a Evódia, em Filipenses 4.2) revelam que devemos esperar conflitos. O conflito é a centelha — e, às vezes, o barril de pólvora — da conexão humana. Amar (ou tentar amar) é falhar, e às vezes até ferir intencionalmente. O amor de Deus é paciente e bondoso, mas nós não somos Deus.

À medida que aprendermos a esperar conflitos em nossos relacionamentos, poderemos nos comprometer a crescer na sabedoria que o conflito exigirá. Sendo bem clara, a sabedoria, como categoria bíblica, não se alcança por meio de técnicas de relacionamento. Ninguém pode aprender sobre sabedoria assistindo a vídeos do YouTube, lendo livros de autoajuda ou mesmo seguindo práticas de mindfulness. O mais maravilhoso é que a sabedoria é algo prático — mas dominar sua prática não é simplesmente uma questão de know-how. A sabedoria nasce primeiro a partir de uma orientação do coração para Deus. O primeiro princípio da sabedoria é o temor do Senhor (Provérbios 9.10).

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Relacionarmo-nos corretamente com Deus é o primeiro passo para nos relacionarmos corretamente com nossos semelhantes. A oração do Pai Nosso destaca essa dinâmica, quando nos ensina a orar primeiro pelo perdão de nossos próprios pecados, e depois pela capacidade de conceder perdão aos outros. Esse perdão que buscamos e concedemos não é meramente terapêutico, como explica Tim Keller em seu livro mais recente, Forgive [Perdoe]. Nós esperamos e trabalhamos por reparação e restauração.

Cresci em um lar onde a ausência de conflito era considerada saúde relacional. E, muito embora eu tenha amadurecido e vindo a entender melhor que o conflito, quando manejado com amor, sugere riscos e recompensas da intimidade, isso não quer dizer que eu soubesse como lidar com conflitos. Tive de fazer o que a sabedoria pede a qualquer um de seus aprendizes: encontrar mestres e aprender. Praticar e admitir os erros.

Meu marido e eu tentamos ensinar a nossos filhos as habilidades necessárias para lidar com as mágoas pessoais que acontecem nos relacionamentos. Eles vão pecar e ser vítimas do pecado, e isso não é nenhuma surpresa. Ensinamos a eles um fundamento simples para lidar com o colapso relacional: peça desculpas. Admita sua culpa. Peça perdão. Nenhuma dessas etapas pode ser omitida, e é melhor segui-las nessa ordem.

Sim, mais vezes do que podemos contar, as desculpas foram superficiais — um “Sinto muito” dito com mau humor. E não, este ensinamento por si só não cobre todas as bases da devida resolução de conflitos. Mas o destinatário do pedido de desculpas também tem um papel importante a desempenhar. Ele ou ela é encorajado a nunca minizar a falha (com um “Não tem importância” ou um “Não é tão grave assim”), mas sim a dizer simplesmente: “Eu perdoo você”.

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Juntos, meu marido e eu praticamos essas habilidades durante a pandemia, quando finalmente nos inscrevemos para quatro sessões de aconselhamento conjugal. Vinte e seis anos de casamento ainda não haviam nos ensinado os perigos inerentes ao conflito — para o qual eu corria precipitadamente e do qual meu marido fugia precipitamente. Precisávamos aprimorar nossas habilidades e também fortalecer a firmeza que todos os relacionamentos exigem. Felizmente, são nossos votos que nos fazem continuar suportando e acreditando, esperando e perseverando; é a nossa fé que nos torna sóbrios para termos uma noção correta de nós mesmos.

Nem todos os relacionamentos são protegidos por um compromisso de aliança, é claro, e, às vezes, certos padrões de conflito podem de fato sugerir que uma amizade deve terminar. Mas talvez o discipulado cristão deva agora enfatizar (contra o Zeitgeist cultural da frágil autoproteção) a paciência e a perseverança que o amor exige, o trabalho que todos os relacionamentos engendram. Não estou segura para amar os outros se, por estar segura quero dizer que nunca sentirei dor. Mas posso aprender a viver menos na defesiva, com menos medo, admitindo meu pecado e dando passos para uma reparação.

“Eu sinto muito. Eu estava errada(o) em machucar você. Pode me perdoar, por favor?”

Tenho certeza de que foi assim que aquela cena de família de anos atrás terminou, com crianças e adultos aliviados. Perdemos o filme, mas conseguimos manter a celebração do Natal. Foi mais uma oportunidade para aprendermos que o amor é muito mais arriscado do que pensamos — e muito mais resiliente.

Jen Pollock Michel é autora de cinco livros, entre eles In Good Time: 8 Habits for Reimagining Productivity, Resisting Rush e Practicing Peace (Baker Books, dezembro de 2022).

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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