O casamento está em declínio, pelo menos nos Estados Unidos; enxergar isso como crise ou oportunidade, porém, depende de como você imagina serem a vida e a comunidade ideais. Como mostram dois livros recentes, é possível que os cristãos cheguem a conclusões muito diferentes sobre o estado atual dos relacionamentos. E isso é uma coisa boa.

Aqueles que lamentam o declínio do casamento tendem a se concentrar no que isso significa para as famílias e os filhos — e com razão. Relacionamentos em que há menos compromisso geram desafios fartamente documentados para as crianças nascidas e criadas em tais relações.

Mas o casamento em declínio não significa apenas estruturas familiares mais fracas. Também significa mais pessoas totalmente fora de um relacionamento amoroso: mais solteiros. Como a teóloga Lina Toth argumenta em Singleness and Marriage after Christendom, “o aumento que vemos hoje na quantidade de pessoas solteiras é, na verdade, uma oportunidade para a igreja reconsiderar tanto a solteirice quanto o casamento como estilos de vida distintamente cristãos”.

Os autores John Van Epp e J. P. De Gance têm uma visão muito diferente em seu livro Endgame: The Church s Strategic Move to Save Faith and Family in America. “Se [as igrejas] querem mudar a maré de um cristianismo em declínio”, escrevem os autores, então elas “devem edificar comunidades intencionais, ancoradas na defesa de relacionamentos saudáveis ​​que tanto levem a casamentos que afirmem a Deus quanto revitalizem esses casamentos”.

A solteirice de antes e de agora

Toth antecipa tais pontos de vista. Seu trabalho em grande parte histórico coloca a visão predominantemente cristã da solteirice e do casamento em um contexto bastante necessário e muitas vezes fascinante. Enquanto Van Epp e De Gance se concentram principalmente nas mudanças ocorridas nos séculos 20 e 21, Toth remonta ao início da igreja.

O que ela encontra é previsível e surpreendente. Não são surpreendentes, por exemplo, os lamentos pelo declínio da família, que não são novidade. Mas surpreendentemente, aqueles que os romanos “acusavam de destruir a família e [...] a sociedade não eram outros senão os cristãos” (grifo meu).

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Se você está pensando que é porque os romanos viam a “família” de maneira diferente do que vemos hoje, isso é verdade, diz Toth. Mas o mesmo acontecia com os cristãos que eles consideravam tão ameaçadores. Ela cita a “insistência dos primeiros crentes em que, para os seguidores de Jesus, sua comunidade primária deveria ser a nova criação chamada igreja”, o que representava uma ameaça radical às normas percebidas.

Essa visão da igreja tinha um apelo significativo para as mulheres, muitas das quais tinham poucas opções para a vida adulta fora do casamento e pouco arbítrio dentro do casamento. Como relata Toth, a solteirice na comunidade cristã desfrutava de vários séculos de estima, especialmente por parte das viúvas e das mulheres que nunca se casaram, para as quais oferecia muitos benefícios.

Com o advento do aumento da proteção legal e do controle da natalidade, as mulheres modernas de todas as religiões, bem como as que não têm religião, hoje nutrem expectativas de liberdades que antes existiam primordialmente para cristãos solteiros. (Para uma visão fascinante sobre esse assunto que, de forma importante, rompe esse quase monopólio do discurso branco, europeu/americano sobre a solteirice, veja a coleção de ensaios de Amia Srinivasan, The Right to Sex.)

Toth não leva em conta o papel reduzido da igreja na solteirice empoderada, talvez porque ela esteja tentando desafiar a frequente abordagem binária (e não bíblica) que os cristãos adotam em relação a essa parceria, abordagem que considera o casamento bom e a solteirice, em geral, ruim.

Tão errado quanto isso seria considerar o estado de solteiro melhor ou pior, dependendo da fé de uma pessoa (ou da falta dela). A solteirice cristã pode ser agonizante. Os solteiros seculares às vezes têm um controle melhor sobre o que esta fase da vida permite. Mas o estado do solteiro secular também pode trazer relacionamentos profundamente dolorosos, em especial aqueles que geram filhos. E os solteiros cristãos muitas vezes se veem presos entre diferentes padrões culturais.

A esse desafio prático, Van Epp e De Gance dedicaram grande parte de suas vidas — trabalho que informa profundamente seu livro Endgame. Van Epp, protestante, desenvolveu e ensinou os currículos sobre relacionamento que aparecem com destaque no livro. De Gance, católico, ajudou a fundar a iniciativa hoje chamada Communio, uma organização sem fins lucrativos que ajuda igrejas a fortalecerem os casamentos em suas comunidades.

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No primeiro terço de Endgame, os autores descrevem o problema que seu livro aborda, baseando-se em pesquisas originais que encontraram uma conexão surpreendente entre o casamento dos pais e o envolvimento de adultos na igreja. O segundo terço se volta para relacionamentos saudáveis, argumentando que “a maioria das igrejas cristãs não oferece treinamento em habilidades de relacionamento, como complemento à sua ênfase no desenvolvimento das virtudes”. O terço final apresenta um plano para as igrejas desenvolverem ministérios voltados para relacionamento, como forma de envolver suas comunidades e fortalecer suas congregações.

Minha primeira impressão de Endgame me deixou cética, apesar de meu contato anterior positivo com a escrita de Van Epp sobre relacionamentos. (Seu livro, então intitulado How to Avoid Marrying a Jerk, foi para mim uma ajuda significativa para superar uma dolorosa decepção romântica; e continua sendo um dos guias sobre namoro mais sábios que já vi). A capa de Endgame mostra uma igreja afundando sob as areias de uma ampulheta. O título e o subtítulo dão um toque sinistro. Com o coração pesado, eu me preparei para mais uma obra que expressava a inquietação cristã sobre o casamento e ignorava a lacuna entre sexos, bastante substancial na igreja.

Felizmente o livro provou ser mais do que isso. Embora algumas de suas ideias para exaltar o casamento provavelmente aprofundem a dor dos solteiros (com base em minhas conversas com mais de 300 cristãos, em quase 40 países), Van Epp e De Gance reconhecem repetidamente aqueles que não têm parceiros. E não ignoram os solteiros mais velhos, como pessoas viúvas e divorciadas.

Endgame também nota a lacuna entre os sexos e incentiva as igrejas a pensarem sobre evangelismo que possa atrai mais homens para sua comunidade. (Não estou convencida de que o evangelismo vá mudar muito a lacuna entre os sexos, mas pelo menos eles reconhecem que isso existe! Muitos cristãos podem aprender com eles.)

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Talvez a contribuição mais significativa de Endgame, no entanto, seja uma descoberta com que nem mesmo Toth poderia contar. De Gance descreve como, em seu papel na Communio, ele contratou o sociólogo Mark Regnerus para realizar uma pesquisa sobre a afiliação religiosa nos Estados Unidos. Inicialmente, os resultados repercutiram o que muitas outras pesquisas mostravam: uma aparente correlação entre frequência religiosa e idade. Mas quando De Gance pediu a Regnerus para filtrar as respostas por origem familiar, “Tivemos um grande momento ‘Aha!’ ”, escreve ele.

A descoberta deles? “As diferenças entre as faixas etárias na frequência à igreja desaparecem, se você controlar apenas uma variável: o casamento dos pais.” Quando os pais dos adultos permanecem casados, as pessoas frequentam a igreja a uma taxa bastante semelhante, independentemente da idade. Além de todos os outros desafios já bem demonstrados, os filhos de pais divorciados ou solteiros também parecem ter dificuldade ou estar menos interessados ​​em compromisso com a igreja.

Melhor juntos

Como esses dois livros são de editoras menores, é provável que muitos leitores não tenham ouvido falar deles. Mas se eu pudesse escolher, a maioria dos leitores desses livros os encontraria como eu os encontrei: juntos.

Por mais que eles tentem reconhecer os solteiros, Van Epp e De Gance parecem esperar que uma combinação de ministérios eficazes em evangelismo masculino e relacionamento consiga reduzir muito o número de solteiros na igreja. Toth serve como um forte contrapeso a isso. Mas, ao tentar evitar problemas comuns em torno da discussão da atividade sexual, ela erra ao abordar muito pouco seu papel na vida dos solteiros.

Toth dá muitos exemplos convincentes de como uma comunidade cristã vibrante tem ajudado os solteiros, desde os tempos de Jesus, a satisfazer quase todas as suas necessidades. Ao fazer isso, ela posiciona a solteirice como um período viável da vida, que pode ser tão significativo quanto o casamento, e às vezes até mais rico. Contudo, para cristãos que procuram seguir a ética bíblica tradicional, o sexo continua sendo a única área para a qual os solteiros não têm provisão alternativa.

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Para a maioria dos solteiros cristãos, isso leva a uma combinação de sexo fora do casamento, lutas com pornografia e masturbação e muita culpa e vergonha em torno de nossos corpos e de nossa sexualidade. Não ajuda o fato de que as atitudes das igrejas em relação ao casamento tendam a sancionar o sexo e a sexualidade no contexto do casamento ​​como inerentemente obedientes e, portanto, primordialmente sem pecado, em oposição à sexualidade primariamente pecaminosa da solteirice.

Van Epp e De Gance não abordam de forma direta o desafio da sexualidade para os solteiros, mas seu livro consistentemente enquadra o treinamento relacional como algo do qual todos os cristãos podem se beneficiar. Isso o desestigmatiza significativamente e, à sua maneira, ajuda a trazer uma dose de igualdade que Toth pretende avançar. Sua ênfase nas habilidades relacionais também fornece amplo apoio para cristãos solteiros cujas lutas com a sexualidade afetam seus relacionamentos. (E de que maneira, como ato inerentemente relacional, a intimidade sexual pode não afetar os relacionamentos?)

Conversas integradas

Um dos maiores desafios da solteirice, para a maioria de nós, cristãos, é sua incerteza. Durante meus quatro anos na Redeemer Presbyterian Church, em Nova York, Katherine Leary, como ela então se chamava, serviu como um exemplo impactante de uma cristã solteira mais velha.

Embora eu nunca tenha tido muito conhecimento de sua história, sabia que ela teve uma carreira vibrante, encontrou Jesus e também um papel significativo em tempo integral ajudando cristãos, em todas as fases da vida, a pensar em como seu trabalho poderia ajudar a promover o reino de Deus. A vida dela não era exatamente uma vida a que eu aspirasse (eu realmente queria me casar), mas admirava o tipo de trabalho com o qual ela se comprometeu em sua vida de solteira de meia-idade. Isso me deu uma visão do propósito que minha própria vida poderia encontrar, mesmo que Deus continuasse a me negar o casamento.

Então, certo dia, notei que o nome dela havia mudado. Ela havia se casado — uma história que um dia eu adoraria ouvir. Outro amigo me contou sobre uma mulher, já falecida, que passou a vida inteira fazendo trabalho missionário sozinha… e depois se casou inesperadamente, aos 80 anos.

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Nenhuma pessoa solteira sabe o que o futuro lhe reserva, não mais do que qualquer pessoa casada. (No entanto, a maioria dos solteiros provavelmente está mais ciente de nosso futuro incerto.)

Todos seremos solteiros pelo menos uma vez na vida, se não duas. Por essa razão, todos os cristãos precisam dessa imagem vibrante da igreja como nossa família definitiva, para a qual o livro de Toth nos chama. Mas todos nós também convivemos com os relacionamentos fragmentados e imperfeitos que De Gance e Van Epp querem nos ajudar a melhorar.

Igrejas e pastores que desejam ler esses livros ganhariam muito com uma discussão em grupo que envolvesse ambos os textos. E o mais importante é que esses dois livros fornecem maneiras para cristãos solteiros e casados ​​conversarem uns com os outros sobre o tipo de comunidade para a qual todos somos chamados. Tornar-se o corpo integrado que Jesus pretendia começa com conversas mais integradas.

Anna Broadway é autora de Sexless in the City: A Memoir of Reluctant Chastity. Ela mora no Alasca, onde está trabalhando em um livro sobre a experiência global da solteirice, que será lançado pela NavPress no outono de 2023.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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