“Como vai?”, meu professor me pergunta quando entro na sala de aula vazia.
“Eles estão bombardeando minha cidade”, é tudo que consigo dizer.
“Ah, não”, eles murmuram.
Eles se lembram de onde eu sou.

Parte de um poema de Abigail de Vuyst, 18 anos, filha de missionários americanos que viveram na Ucrânia.

Abigail de Vuyst, filha de missionários americanos que está no primeiro ano da faculdade, já sentia falta de sua casa na Ucrânia, lugar em que viveu a maior parte de sua vida, enquanto estudava na faculdade em Michigan. Agora, ela passa seus dias se preocupando com os amigos. Será que eles estão seguros em seus porões? Será que vão conseguir sair?

“É difícil ficar apenas sentada, vendo tudo acontecer”, disse ela.

Lar é um conceito complexo para filhos de missionários (FMs) — crianças e jovens cuja cidadania pertence a um país e cuja criação se dá em outro. Mesmo na melhor das circunstâncias, o mundo dos FMs é “areia movediça”, disse a autora Michele Phoenix, defensora da causa dos FMs. E agora?

“Estamos destruídos”, disse Annie Wiltse, professora da escola internacional na Ucrânia que Abigail costumava frequentar. Annie e seus alunos tiveram apenas 24 horas para fazer as malas para a evacuação. “Este é… em alguns casos, o único lar que eles já conheceram na vida.”

Os registros sobre o número de crianças que vivem com seus pais missionários em outros países não estão disponíveis, mas os números de 2020 da World Christian Database mostram que havia cerca de 6 mil missionários cristãos na Ucrânia e 425 mil missionários estrangeiros em todo o mundo.

Alguns filhos de missionários americanos estão se sentindo impotentes, presos nos Estados Unidos por causa das restrições da COVID-19; outros estão esperando no Kansas por um período ainda indefinido, em função de um problema de sequestros no Haiti, e muitos que estão na fase de transição para a faculdade (algo que acontece a cada outono) estão deixando para trás países de origem em turbulência.

Os FMs crescem viajando pelo mundo, desfrutando de ricas experiências culturais e muitas vezes permanecem conectados a fortes comunidades de fé. Mas, mesmo para aqueles criados em países não devastados pela guerra, essa não é toda a história, dizem os especialistas. Muitos experimentam perdas, confusão de identidade, crises de fé e negligência.

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De fato, pesquisas mais recentes indicam que o nível de trauma que os filhos de missionários vivenciam é muito maior — quase o dobro — do que o das crianças que crescem nos Estados Unidos. E, no entanto, suas necessidades são muitas vezes negligenciadas por agências missionárias, por parceiros da igreja local e até mesmo por suas próprias famílias, tanto no campo missionário quanto fora dele.

“É um mito essa história de que as crianças são naturalmente resilientes”, disse Lauren Wells, outra autora e defensora da causa dos FMs. “Resiliência é algo que precisa ser construído, nutrido e cuidado.”

Eu mesma sou filha de militar, fui uma criança da terceira cultura, sou mãe de três filhos de missionários, dos 14 anos que servimos na Indonésia, e jornalista que também escreveu para esse público dos FMs nos últimos 2 anos, desde que retornamos para os Estados Unidos. Achei que entendia bem as dificuldades que eles enfrentam. Mas minha entrevista com Wells e a pesquisa sobre trauma e negligência foram reveladoras.

Felizmente, há um contingente cada vez maior na comunidade missionária que finalmente está começando a prestar atenção às necessidades críticas dessas crianças. Especialistas, defensores e apoiadores — muitos deles filhos de ex-missionários — estão oferecendo orientação sobre como lidar com os problemas singulares que os FMs enfrentam.

As comunidades missionárias não apenas devem se mostrar dispostas a falar sobre questões difíceis, mas também devem fazer planos para fornecer cuidados intencionais de longo prazo, dizem esses especialistas. E a igreja global tem um papel importante a desempenhar nesse esforço.

Muitas vezes, as famílias de missionários são vistas como “supercristãos” que são invulneráveis às consequências negativas decorrentes de seus muitos sacrifícios pela missão de Deus. E assim, embora as agências missionárias tenham uma responsabilidade especial de ajudar os FMs, as igrejas locais que fazem parceria com esses missionários também devem reconhecer que seus filhos estão pagando um alto preço pelo compromisso dos pais com o reino de Deus.

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“A igreja precisa estar ciente de que os filhos de missionários precisam ser cuidados, e não colocados em um pedestal”, disse Wells.

O trauma por trás dos sorrisos

Os filhos de missionários são apenas um dos tipos de criança da terceira cultura (TCK, na sigla em inglês), termo cunhado pelos antropólogos John e Ruth Useem, na década de 1950, para descrever crianças que não se identificam plenamente com a cultura de seus pais nem com a cultura do país em que vivem, formando, em vez disso, uma “terceira cultura”.

Elas experimentam transição frequente e espera-se que voltem para o país de origem de seus pais, também chamado de “país do passaporte”, para frequentar a universidade. As crianças da terceira cultura são conhecidas pela capacidade de interagir bem com várias culturas e por serem construtoras de pontes, mas uma pergunta as deixará perplexas: “De onde você é?”

“Há tantas respostas diferentes para essa pergunta simples”, disse o autor Dan Stringer, um filho de missionários que cresceu entre Nepal, Filipinas, República Democrática do Congo, Canadá e Estados Unidos. “Onde eu nasci? De onde são meus pais? Qual é o país que mais conheço? Onde moro atualmente?”

Essas transições podem ser experiências traumáticas — especialmente quando as perdas incluírem não apenas os amigos e a cidade [em que viviam], mas também o país, o idioma, a cultura, os alimentos, sons e cheiros. É por isso que filhos de missionários e crianças da terceira cultura geralmente apresentam sinais de transtorno de estresse pós-traumático complexo (TEPT) quando adultos, disse Wells.

“É a perda de um universo a cada vez”, disse Phoenix.

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Agora, os defensores da causa dos FMs têm a pesquisa para educar os pais e as organizações. Os resultados preliminares do TCK Training mostram que as pontuações dessas crianças na categoria experiência adversa na infância (ACE, na sigla em inglês) são mais altas do que as das crianças americanas, disse Wells, CEO da organização e responsável por liderar a pesquisa junto com Tanya Crossman. Cerca de 20% das crianças da terceira cultura, quando se tornam adultos, relatam ter quatro ou mais fatores relacionados a ACE — em contraste com os cerca de 12,5% da população em geral dos EUA.

As diferenças são particularmente surpreendentes quando consideramos que as pontuações mais altas de ACE nos Estados Unidos geralmente vêm de um status socioeconômico mais baixo, disse Wells. No entanto, muitas destas crianças crescem com privilégios comparativos.

“Só porque as coisas parecem realmente ótimas não significa que essas crianças [FMs] não estejam expostas a um nível ainda mais alto de trauma de desenvolvimento”, disse Wells.

O estudo, que será publicado ainda este ano, mostra, como era de se esperar, que essas crianças veem muita morte e pobreza, relata Wells. Mas alguns dos traumas são inesperados. Por exemplo, se ficam com uma babá que não fala a língua delas — uma prática comum, vista como oportunidade pela imersão no idioma que ela proporciona — algumas crianças podem sentir isso como negligência emocional.

“Do ponto de vista da criança, a pessoa que deveria cuidar das minhas necessidades não consegue entender nada do que estou dizendo e não há ninguém por perto a quem eu possa pedir isso”, disse Wells. “Às vezes, podemos mitigar esses traumas educando sobre coisas desse tipo.”

A negligência familiar também foi um fator medido pelo estudo. Cerca de 32% das crianças da terceira cultura acreditavam que seus pais não as achavam especiais ou importantes, enquanto 24% achavam que em suas famílias as pessoas não apoiavam umas às outras, relatou Wells.

No passado recente, várias organizações missionárias exigiam que os pais enviassem seus filhos para internatos a partir dos seis anos de idade, e alguns pais ainda optam por fazê-lo, pela qualidade da educação. Mas para alguns filhos de missionários, isso pode parecer abandono tanto por parte de seus pais quanto de Deus, dizem os defensores dos FMs.

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Este problema não se limita aos Estados Unidos. Na verdade, os filhos de missionários são cada vez mais crianças que não são brancas nem americanas, dizem os especialistas. O Sul Global agora envia mais missionários, coletivamente, do que os Estados Unidos, de acordo com as estimativas de 2020 da World Christian Database.

O Brasil é o segundo maior país de envio, depois dos Estados Unidos, com cerca de 40 mil missionários enviados. Os brasileiros muitas vezes se juntam a uma equipe de língua inglesa em outros países. Seus filhos podem frequentar escolas internacionais de língua inglesa, o que acrescenta mais um idioma que eles devem aprender, disse Alicia Macedo, coordenadora do “Filhos de Missionários” da Associação Brasileira de Missões Transculturais.

Independentemente do país de origem dessas crianças, no entanto, os problemas que enfrentam são amplamente universais.

Quando Deus é seu empregador

Para os filhos de missionários, a resposta para a pergunta sobre quem os enviou para o exterior é muito mais clara: foi Deus. Isso acrescenta complexidade — e às vezes dor — à experiência dos filhos de missionários.

Muitos deles cresceram em uma cultura na qual os sentimentos negativos são reprimidos. Eles se sentem perdidos no propósito maior da missão de Deus, e sua dor fica escondida. Deus não é visto como alguém seguro para alguns, disse Wells.

“O componente fé para os filhos dos missionários os torna únicos, porque Deus é o instigador de todas as coisas grandiosas e de todas as partes dolorosas de se crescer transculturalmente no ministério”, disse Phoenix. “Tudo na vida deles está relacionado à fé.”

Falei pela primeira vez com Phoenix quando ela estava se apresentando em uma conferência sobre educação, na Tailândia. Eu era uma mãe missionária que fazia homeschooling com meus filhos, morava em Bornéu, e estava tentando descobrir como ensinar melhor meu filho que tinha dificuldades de leitura. Ela me abriu os olhos para algumas dessas dificuldades mais profundas.

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Segundo dizem os defensores, mesmo quando os FMs relatam experiências de fé e familiares mais positivas, ainda assim eles precisam de liberdade para examinar suas crenças.

“Faço isso desde o início, porque tenho feito comparações”, disse Rachel Kuo, uma americana filha de missionários que cresceu em Hong Kong e Taiwan, mas visitava os Estados Unidos. “Eu ficava perplexa com a igreja americana e me perguntava: Por que ela é tão próspera? Por que se reúne em prédios tão grandes?”

Alguns filhos de missionários usaram o próprio processo pelo qual passaram como um convite para que a igreja americana pudesse enxergar o cenário maior. Stringer, que escreveu Struggling with Evangelicalism: Why I Want to Leave and What It Takes to Stay, usa a diversidade de suas experiências cristãs para encorajar os cristãos americanos em sua fé.

“Eu experimentei o quanto a fé varia em função de geografia, raça”, disse ele. “Sei que somos apenas um lugar em um grande mapa. Isso me ajuda a filtrar quais são as coisas essenciais que qualquer cristão valorizaria e quais são as coisas que são exclusivas da América”.

Muitas crianças da terceira cultura que lutam com traumas ou abusos em missões, com sua sexualidade ou saúde mental acabam desconstruindo sua fé, disse Phoenix.

Por exemplo, quando a família de Josh — que na época tinha tinha seis anos — se mudou para o leste da Ásia, ele perdeu todos os amigos que eram dos Estados Unidos. (O sobrenome de Josh está sendo omitido por razões de segurança, por causa de onde seus pais ainda servem.) Ele levou anos para aprender o idioma bem o suficiente para fazer amigos locais em sua nova casa.

Anos depois, ele voltou para os Estados Unidos para fazer faculdade e lutou para encontrar seu lugar mais uma vez. E, bem no momento em que ele estava tentando se ajustar à sua nova vida, perdeu um amigo próximo (também filho de missionários) que se suicidou. Ele começou a lutar contra a depressão e não conseguiu encontrar apoio na igreja. Então, culpou Deus e se afastou da fé.

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“De todas as pessoas que poderiam legitimamente se considerar filhos de Deus, sinto que as crianças da terceira cultura são as que devem ter mais direito a isso, pois somos um grupo de pessoas nômades, que viajam em nome de Deus, levando sua palavra e vida às nações”, ele disse. “E, no entanto, somos os que aparentemente são deixados de lado e não são amados nem cuidados pelo corpo da igreja.”

Outro filho de missionário o encorajou, e ele finalmente voltou à fé e à igreja. Agora, ele está se preparando para se mudar com a esposa para a Espanha, a fim de apoiar filhos de missionários que estão no campo missionário. Seu objetivo é ajudar essas crianças a processarem experiências traumáticas enquanto são mais novas, antes que se tornem obstáculos que precisem ser superados quando adultos.

Imigrantes ocultos envolvidos em jornadas profundas

Há muitas maneiras de as igrejas locais apoiarem os filhos de missionários de suas redes.

Por exemplo, e se todas as congregações dedicassem um tempo para entrar em contato com as famílias missionárias com as quais fazem parceria, perguntando especificamente como poderiam apoiar as crianças? Ou se as igrejas organizassem eventos especiais para esses filhos de missionários sempre que suas famílias voltassem para licença ou para tarefas do ministério?

Pode ser algo tão simples quanto uma família que tenha crianças da mesma idade levá-los para almoçar depois do culto ou levar seus adolescentes para grupos de jovens ou acampamentos da igreja. E, na era da mídia social, há muitas maneiras de continuar em contato com filhos de missionários que estejam enfrentando dificuldades no exterior.

Quanto aos filhos de missionários que voltam para os Estados Unidos para fazer faculdade e se juntam a uma igreja próxima, pode ser adotada uma abordagem diferente — como estar disposto a fazer perguntas mais profundas e estar preparado para ouvir respostas difíceis.

“Ouvir é exercer hospitalidade”, disse Rachel Kuo.

Pergunte a esses jovens como eles estão realmente se saindo e o que tem sido difícil em suas experiências, sugerem os defensores. Mas também deixe de lado as diferenças e ouça pessoas que vêm de um outro mundo de experiências, Kuo pede.

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Outro ponto foi mencionado por várias das pessoas que entrevistei para este artigo: filhos de missionários estão hoje perguntando: Como os missionários e as igrejas que os apoiam podem alcançar prostitutas na Ásia, mas não acolhem bem em sua vida pessoas que têm pensamentos e crenças diferentes dos seus?

As jornadas das crianças da terceira cultura não são apenas amplas, por abrangerem o mundo todo, mas também profundas, disse Kuo. Elas estão tentando se encontrar enquanto suas famílias se veem em meio a grandes e complexos diálogos que envolvem missões e colonialismo, racismo institucional e sofrimento humano.

Na verdade, uma das ocasiões em que as crianças da terceira cultura mais precisam do apoio dos pais e de suas comunidades eclesiásticas é quando elas se mudam para o seu país de passaporte, dizem os defensores do FMs, especialmente porque muitas vezes se sentem ressentidas por terem de deixar o país em que nasceram.

Por exemplo, esses chamados “imigrantes ocultos” podem parecer americanos por fora, mas não se sentem como se fossem daqui, diz Josh.

“Em países estrangeiros, somos tratados com graça”, disse Josh. “Quando você volta para os Estados Unidos, todo mundo lhe trata como um idiota, porque ‘Como você pode não saber disso?’”

Às vezes, até as coisas mais simples podem revelar essas diferenças — como não saber como funciona um banco ou um hospital no outro país. Muitos filhos de missionários chegam aos Estados Unidos para fazer faculdade sem saber dirigir.

“Precisamos de muito mais ajuda do que jamais admitiremos”, disse Josh.

Nos EUA, o MK Harbor Project é uma rede para pessoas dispostas a ajudar filhos de missionários com esse tipo de coisas práticas. As faculdades estão descobrindo como fazer isso também.

Algumas faculdades cristãs estão encontrando maneiras de fazer perguntas sobre ser criado em países estrangeiros, disse Tammy Sharp, diretora do MuKappa, que é um ministério para filhos de missionários presente em 20 campos universitários. Algumas até mantêm uma orientação separada para calouros que são filhos de missionários. Outras faculdades cristãs estão ligadas a ministérios que acolhem filhos de missionários que queiram viver com colegas (também filhos de missionários), enquanto frequentam a faculdade.

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De sua parte, Kuo está convidando crianças da terceira cultura que participarem este ano da Urbana, uma conferência de missões globais, para um momento especial “para lutar com algumas das coisas que estão por vir”. Mas a proposta é, principalmente, ser um espaço onde elas possam ter um senso de pertencimento.

Ter esse senso de “pertencimento” pode ser pedir demais, agora, dos filhos de missionários que fogem da guerra na Ucrânia. Mas Wiltse espera que dar voz a seus alunos os ajude a encontrar seu caminho. Ela acorda cedo em Michigan — às 3 da manhã — para dar aula para seus alunos na Europa.

Ela os guia em momentos de escrita livre. Ela se gaba da defesa que eles fazem em prol da Ucrânia. E ela publica a poesia que de Vuyst escreveu para todo o mundo ver.

“Como vai?”
Eu suspiro; sei que estou segura com eles.
“Tem sido um dia difícil.”
Eles me ajudam a processar,
Choram comigo e oram comigo.

— Abigail de Vuyst

Rebecca Hopkins é uma jornalista que vive no Colorado.

Traduzido por Mariana Albuquerque

Editado por Marisa Lopes

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