Nota da edição em português: este artigo tem como foco as eleições norte-americanas. Seus argumentos, porém, podem perfeitamente ser aplicados a diferentes contextos, como o brasileiro.

A temporada de eleições de meio de mandato não é o momento mais propício para alguém se sentir bem em relação à democracia.

Somos inundados por propagandas eleitorais de teor negativo, que muitas vezes distorcem informações sobre os candidatos adversários e os retratam da pior maneira possível. Cada lado adverte que eleger o partido adversário significará um desastre para o país em escala apocalíptica.

Será que os cristãos podem realmente defender uma democracia como esta? Sim. Podemos e devemos. E não há melhor momento para fazê-lo do que este que estamos vivendo.

A democracia está atualmente enfrentando uma crise sem precedentes, tanto nos Estados Unidos quanto em todo o mundo. De acordo com o principal grupo de pesquisa do mundo para acompanhamento do progresso democrático, o Instituto V - Dem, existem apenas 34 democracias liberais no mundo, o menor número desde meados da década de 1990. E apenas 13% da população mundial vive em um desses países democráticos — nível abaixo dos 18% de 10 anos atrás. (O Instituto V-Dem classifica os Estados Unidos em 29º lugar na lista de democracias liberais, e sua pontuação está caindo rapidamente.)

A democracia permite que haja independência jornalística, eleições livres e justas e transferência pacífica de poder; todos esses, porém, são atributos frágeis e muito fáceis de perdermos. Atualmente, é muito mais comum um país democrático se tornar autocrático do que um país autocrático se tornar uma democracia.

Alguns países que perdem seu status democrático se tornam ditaduras militares totalmente autocráticas. Contudo, o relatório de 2022 divulgado recentemente pelo Instituto V-Dem sugere que a pior e mais potente ameaça à democracia não é a ditadura, mas sim o que o instituto chama de “autocracia eleitoral”.

Sob a égide desse sistema, as eleições continuam a ser realizadas, mas o governo manipula o processo político controlando a mídia, assediando jornalistas que lhe façam críticas e expandindo inconstitucionalmente o Poder executivo.

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Estima-se que 44% da população mundial vive atualmente em uma autocracia eleitoral, de acordo com o Instituto V-Dem. Os países que estão nessa categoria (ou que estão se movendo rapidamente em direção a ela) incluem Brasil, Índia, Hungria, Polônia e Turquia, entre muitos outros.

E eis aqui a coisa assustadora para os cristãos que levam sua fé a sério: em todos os países que acabei de mencionar, os conservadores religiosos estão entre os principais defensores desse processo de autocratização. Nos países de maioria cristã, esses conservadores religiosos são cristãos. No Brasil, muitos deles são até evangélicos.

Por que os eleitores — inclusive, em muitos casos, eleitores cristãos — elegem políticos que limitam a liberdade de imprensa e removem alguns dos freios e contrapesos das leis que tradicionalmente protegem a democracia?

De acordo com o exaustivo estudo do Instituto V-Dem em mais de 200 países, o principal motivo é a polarização partidária. Se os temores dos eleitores em relação a um partido de oposição se tornarem fortes o suficiente, eles muitas vezes aceitarão quaisquer medidas que mantenham esse partido fora do poder, mesmo que isso signifique a perda de certas liberdades constitucionais.

Essa dinâmica parece estar ocorrendo nos Estados Unidos. Quanto mais tememos o partido de oposição, maior a probabilidade de desculparmos medidas antidemocráticas que possam ser necessárias para manter esse partido fora do poder. Dito de outra forma: quanto mais acreditarmos que nossa causa é justa, menor será a probabilidade de nos preocuparmos com o processo necessário para alcançar nossos objetivos políticos. Vamos todos agir como se o fim justificasse os meios.

Isso pode explicar por que os evangélicos americanos às vezes têm sido atraídos por movimentos antidemocráticos.

Nos Estados Unidos [e em outros países], os evangélicos muitas vezes estão mais interessados em lutar por questões políticas específicas do que em preservar o próprio processo democrático. E, quando acreditam fortemente na justiça de sua causa, alguns deles demonizam seus oponentes, a ponto de estarem dispostos a lançar mão de medidas antidemocráticas para manter o partido de sua preferência no poder.

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Nos últimos 200 anos, as campanhas políticas evangélicas muitas vezes se concentraram em usar o voto para combater o mal. Há muito mérito nessa visão. As Escrituras de fato retratam o governo como um agente da justiça. Romanos 6 e também várias passagens do Antigo Testamento deixam isso claro.

Contudo, se nos concentrarmos apenas no papel do governo em implantar uma ordem justa, podemos perder de vista algo que muitos protestantes têm defendido historicamente: que a preservação do processo democrático é tão importante quanto a criação de leis justas, porque permite que nos certifiquemos de que todas as pessoas sejam tratadas como alguém que é criado à imagem de Deus e cuja voz importa.

Em outras palavras, o processo democrático pode ser uma forma de amarmos o nosso próximo como a nós mesmos.

James Kloppenberg, historiador de Harvard e autor de Toward Democracy, argumentou que a democracia só terá sucesso se os partidos de ambos os lados estiverem “dispostos a permitir que seus piores inimigos governem, se vencerem uma eleição”.

Essa disposição de sacrificar os próprios interesses, escreve ele, muitas vezes se originou de uma “tradição judaico-cristã” que está disposta a “ver o chamado para amar os outros por quem são” como uma oportunidade para “autorreflexão e autotranscendência”.

De acordo com Kloppenberg, há um valor intrínseco em permitir que alguém de quem discordamos veementemente exerça o poder político, mesmo quando acreditamos que esta pessoa está usando o poder para fins horrendos.

Essa abnegação, ele acredita, deve estar enraizada em algo maior do que nós mesmos, e é por isso que as democracias são tão frágeis. A maioria delas entra em colapso total ou, no mínimo, torna-se mera autocracia eleitoral, na quais realizam-se eleições, mas poucos confiam nos resultados e ainda menos gente se atreve a criticar abertamente os que estão no poder.

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Para sustentar uma democracia, devemos valorizar mais o processo democrático do que as causas políticas que defendemos. Devemos amar mais nosso próximo do que amamos nossos próprios interesses. Isso significa estarmos dispostos a aceitar o resultado das eleições, mesmo quando não gostamos dele, e estarmos dispostos a fazer tudo que pudermos para defender a liberdade de crítica dos jornalistas, dos quais podemos até mesmo discordar.

Mas também significa que, quando somos nós que estamos no poder, temos a obrigação de ouvir nossos adversários políticos e de fazê-los se sentirem valorizados. Os vencedores de uma eleição devem modelar uma atitude que Abraham Lincoln defendeu em seu segundo discurso de posse: “hostilidade para com ninguém” e “boa vontade para com todos”.

Os cristãos evangélicos têm as ferramentas teológicas para abraçar essa visão. Nós, de todas as pessoas, devemos saber que nossa visão é obscurecida pelo pecado e por interesses pessoais, e que nossas próprias causas políticas às vezes são baseadas em interpretações equivocadas da verdade de Deus. Se a olharmos em retrospectiva, nem toda causa política evangélica parece tão nobre quanto parecia em sua época. A consciência de nossa própria falibilidade nos dá a humildade de ouvir os outros, mesmo enquanto defendemos respeitosamente nossa própria posição.

O reino que buscamos acima de tudo é o reino de Deus — não é a vitória de um partido político específico, nem mesmo o progresso de um país específico. Essa consciência nos permite confiar o governo a pessoas que achamos que possam estar profundamente erradas. Pois sabemos que Jesus continuará a ser o rei, mesmo quando os governantes terrenos falharem conosco.

Com essa percepção, temos a liberdade de usar nosso voto para amar nosso próximo. Embora, é claro, tentemos usar nosso voto para promover causas justas, essas causas em si não são nosso objetivo final. Em vez disso, nossa medida de sucesso é o avanço do reino de Deus, que se baseia em fraqueza, humildade e amor cristão pelos outros.

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Enquanto alguns à nossa volta recorrem a ataques partidários, nós, em vez disso, podemos usar este período eleitoral como uma oportunidade para ouvir outros eleitores e demonstrar preocupação genuína em relação a coisas com as quais eles se importam. Em vez de procurarmos defender nossos próprios interesses, procuremos amar os outros. E, se fizermos isso, podemos usar este período eleitoral como uma chance para enaltecer o amor de Jesus, independentemente de o partido de nossa preferência vencer nas urnas.

Deus não ordenou a democracia nem fez do seu processo eleitoral o único modo aceitável de governar. No entanto, preservar a democracia pode ser um dever para os eleitores cristãos. Fazemos isso não porque haja uma virtude inerente em votar, mas porque a democracia é uma maneira de mostrarmos preferência pelos outros e de praticarmos a humildade e a abnegação.

E essas são virtudes que definitivamente merecem ser preservadas.

Daniel K. Williams é professor de história na University of West Georgia e autor de Defenders of the Unborn: The Pro - Life Movement Before Roe v . Wade.

Traduzido por Mariana Albuquerque.

Editado por Marisa Lopes.

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