Este artigo foi adaptado da newsletter (em inglês) de Russell Moore. Inscreva-se aqui.

Assim como acontece com alguns norte-americanos, que reivindicam abertamente para si o rótulo de “nacionalismo cristão”, essa ideologia está avançando no mundo todo.

A quase fusão que está em curso, da Igreja Ortodoxa Russa com o governo autoritário de Vladimir Putin, ganhou as manchetes, quando o patriarca da igreja declarou que morrer na Ucrânia como parte do exército invasor de Putin “lava todos os pecados”. Ao mesmo tempo, outra líder populista, empregando a retórica nacionalista cristã, obteve vitória nas eleições da Itália.

Tendo isso em mente, os cristãos evangélicos do mundo talvez devam lembrar a si mesmos de que o nacionalismo cristão não é capaz de salvar o mundo — nem vai salvá-lo.

Ao analisar a vitória de Giorgia Meloni, o comentarista Damon Linker observou que o partido dela, Irmãos da Itália, — que tem raízes em remanescentes da Segunda Guerra Mundial, no movimento político promovido por Benito Mussolini, homem forte do fascismo — moderou significativamente sua retórica nos últimos anos. Alguns podem olhar para isso com suspeita, dado o discurso pós-eleitoral de Meloni, no qual ela culpou “especuladores financeiros” de roubarem os italianos de suas raízes e de sua identidade — termo que, ao longo da história, quase sempre foi equiparado a judeus.

Independentemente de quão iliberal o novo governo italiano possa ser, Linker chama a atenção para a demografia por trás dessa virada eleitoral, que tem implicações para o restante do mundo ocidental. O movimento populista, representado pelo partido que saiu triunfante, é cimentado com uma forma particular de religião, a saber, “aqueles que se declaram religiosos, mas não praticantes”.

Para algumas pessoas, essa categoria soa como algo do tipo “aqueles que se declaram empregados, mas não têm renda”. E, no entanto, como observa o historiador Adam Tooze, esse grupo não só é o maior segmento, como também a maioria da população italiana — 52%. São as pessoas, escreve Linker, “que tratam a religião como um símbolo ou marcador identitário sem de fato crer nela ou praticá-la”.

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Linker adverte pessoas que são de centro-esquerda ou de centro-direita — assim como ele — sobre o fato de que, se não conseguirem reconquistar a classe trabalhadora, continuarão perdendo para os movimentos populistas e nacionalistas. Mas ele também defende que ninguém é capaz de vencer, se não conseguir apelar para “os religiosos nominais”.

Em termos de ciência política, Linker está correto, sem sombra de dúvida. E mesmo que a democracia e a estabilidade global fossem as únicas coisas em jogo, esse ainda seria um debate que vale a pena. Para os cristãos evangélicos, porém, há muito mais em jogo — a saber, está em jogo a que nos referimos quando falamos em “cristianismo”, para começo de conversa.

A expressão nacionalismo cristão refere-se ao uso de palavras, símbolos ou rituais cristãos como meio para reforçar uma identidade étnica ou nacional. Tal como acontece com qualquer outra ideologia, esta também existe ao longo de um espectro.

Na ponta (até agora) menos extremada estão pessoas que, da mesma forma que os líderes populistas na Itália, França e Alemanha, reivindicam o “cristianismo” como um aspecto-chave de sua identidade nacional ou étnica — e como uma forma de diferenciar seu grupo daqueles que definem como outsiders (muçulmanos, “globalistas” etc.). Na ponta mais extremada estão pessoas que fazem pronunciamentos teológicos explícitos como base para sustentar agressões iliberais autoritárias de cunho étnico e nacionalista — assim como fez o patriarca ortodoxo russo Kirill, ao tentar reprimir os protestos contra a guerra dizendo que “o sacrifício no curso do cumprimento do dever militar lava todos os pecados.”

Em termos de ordem mundial, um dos lados do espectro claramente causa danos mais imediatos. Os comentários de Kirill são semelhantes, se não idênticos, a clérigos muçulmanos jihadistas radicais dizendo a homens-bomba que, após a morte, serão recebidos por virgens no paraíso. Esse tipo de promessa pode não só motivar pessoas desesperadas a cometer atrocidades contra o testemunho de suas próprias consciências, mas pode também conferir autoridade inquestionável àqueles que ordenam tais atrocidades. Na verdade, nessa visão do líder autoritário, tal aliança entre autoridade religiosa e política parece conceder-lhe as “chaves do reino”, e quem for convocado na terra para esse reino está convocado para o céu.

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Essa dinâmica não é novidade. No livro do Apocalipse, o poder político da Besta é sustentado pelo falso profeta, “que havia realizado os sinais miraculosos em nome dela, com os quais ele havia enganado os que receberam a marca da besta” (Apocalipse 19.20). A revelação, afinal, veio a João em meio a um Império Romano no qual os césares reivindicavam status divino para si mesmos.

Tal arrogância já seria ruim o bastante do ponto de vista sociológico; mas e se a Bíblia estiver certa sobre o inferno? E se o julgamento de Deus vier não apenas contra nações, mas também contra indivíduos? E se o pecado for definido como uma falta de conformidade não em relação a um grupo ou país, mas em relação à santidade de Deus? E se Jesus estiver certo, quando diz que “ninguém pode ver o reino de Deus, se não nascer de novo” (João 3.3)?

Se assim for, então, a afirmação de Kirill de que o militarismo nacionalista é capaz de salvar uma pessoa não só é manipuladora, mas também blasfema. Ela fortalece não apenas a injustiça nacional, mas também a condenação pessoal.

Além disso, a verdade do evangelho segundo Jesus significa que formas menos sangrentas de nacionalismo cristão também estão aquém do reino de Deus.

Na verdade, o argumento de todo o Novo Testamento é que as pessoas não podem comparecer perante Deus com base em solidariedade étnica, cultural ou mesmo moral (Lucas 3.8-9; Colossenses 2.16-22). Ninguém é justificado nem mesmo pelas obras da lei que foi dada por Deus, e muito menos pela carne, ou seja, por sua identidade étnica ou nacional temporal (Gálatas 3.15-16). Cada pessoa deve se unir a Cristo por arrependimento e fé pessoais — e não pelo fato de viver em uma cultura que se conforme a alguma definição exterior de “valores cristãos”.

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Jesus nos ensinou que nada do que vem de fora pode contaminar uma pessoa; antes, é o que está dentro do coração de uma pessoa que a contamina (Marcos 7.14-23). Foi por isso que ele se afastou especificamente daqueles que queriam usar seu evangelho para libertação política (João 6.15) ou para prosperidade material (v. 26-27).

Apesar de se perceberem como oposição ao evangelho social de antigamente, os nacionalistas cristãos abraçam a mesmíssima visão do evangelho. Para a ala esquerda orientada para o evangelho social, o cristianismo existe para construir uma ordem social em sintonia com o progresso ascendente da humanidade. Para a direita nacionalista cristã, o cristianismo existe para construir uma ordem social em sintonia com a identidade nacional ou étnica. O evangelho é um meio para um utopismo prospectivo no primeiro caso e para uma nostalgia retrógrada no outro. O nacionalismo cristão é uma teologia da libertação para os brancos.

E esse não é o evangelho de Jesus Cristo.

O nacionalismo cristão é uma espécie de Grande Comissão ao contrário — na qual as nações procuram fazer discípulos de si mesmas, usando a autoridade de Jesus para batizar sua identidade nacional em nome do sangue, da terra e da ordem política.

O evangelho é um meio para nenhum outro fim senão a união com o Cristo crucificado e ressurreto, aquele que transcende e julga todos os grupos, identidades, nacionalidades e culturas.

O nacionalismo cristão pode muito bem “funcionar” no curto prazo ao cimentar laços de solidariedade cultural segundo a carne.

No entanto, sem derramamento de sangue não pode haver perdão de pecados. Sem o Espírito Santo não pode haver novidade de vida.

O nacionalismo cristão não pode fazer retroceder o secularismo, pois é apenas outra forma deste. Na verdade, é uma forma ainda mais virulenta de secularismo porque diz ser “cristão” algo que não pode comparecer perante o tribunal de Cristo.

O nacionalismo cristão não é capaz de salvar o mundo; ele não é capaz de salvar nem mesmo você.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today.

Traduzido por Marisa Lopes.

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