Johnny Manziel não menciona a arma até o terceiro ato de Untold: Johnny Football, o documentário da Netflix, lançado este mês, sobre sua breve carreira como quarterback da NFL. Quando a menciona, porém, ele está mirando em si mesmo. A essa altura, sua carreira havia implodido e todas as pontes com a família, amigos, companheiros de equipe e treinadores haviam sido queimadas.

“Eu tinha planejado fazer tudo o que queria naquele momento da minha vida”, diz Manziel, enquanto passam imagens do jogador manuseando pilhas de dinheiro e festejando em Las Vegas. “E, de repente, meu plano era tirar minha vida”, continua ele. “Até hoje não sei o que aconteceu, mas a arma simplesmente disparou.”

Untold [O que não foi contado] é uma antologia focada no esporte do passado e do presente. Mas o título da série é quase que exageradamente preciso no que diz respeito ao episódio de Manziel: é mais revelador naquilo que não revela do que naquilo que revela, chegando bem perto do limite da realidade inquietante no centro da história, mas recuando a cada vez.

O documentário dedica muito espaço para o declínio de Manziel e as muitas expressões de preocupação lamentando seu colapso. Mas não reconhece o modo que aquelas pessoas que deveriam ter cuidado dele possibilitaram que ele torasse US$ 5 milhões com bebidas em um mês de desvarios. Nem apresenta uma visão alternativa, sequer no final, de quem “Johnny Football” poderia ter sido. Johnny sobreviveu, e graças a Deus — mas e agora? Que tipo de homem ele se tornará?

Untold não está sozinho nessa relutância em enfrentar a questão. O que é um homem, o que ele deve ser, que papéis os homens podem desempenhar — tudo isso parece estar fora do âmbito das discussões atuais sobre masculinidade em nossa cultura. Sabemos cada vez mais como reconhecer e condenar a “masculinidade tóxica”, e com razão. Mas e quanto às maneiras não tóxicas de ser homem? Ou melhor ainda, que tal irmos além de simplesmente evitar a toxicidade para trazermos uma visão construtiva da virtude masculina a homens em crise?

Porque nós estamos em crise, mesmo que não de forma tão visível como Manziel. A lacuna na história dele reflete a lacuna maior em nosso imaginário cultural. Richard Reeves, autor de Of Boys and Men: Why the Modern Male Is Struggling , Why It Matters , and What to Do about It [Homens e meninos: por que o homem moderno tem enfrentado desafios, por que isso importa e o que podemos fazer], descreve a questão em termos de “roteiros sociais”. Nas décadas passadas, segundo ele, o roteiro social para os homens era bastante simples: ser um provedor, protetor e guardião e incutir na sua família os valores que lhe foram transmitidos pelo próprio pai. É um roteiro carregado de responsabilidade e de propósito, e esse era um fardo que a maioria dos homens almejava carregar.

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Mas o correlato roteiro social para as mulheres apresentava falhas graves. O ideal de meados do século não dava às mulheres qualquer senso de liberdade para escolherem uma vocação fora do lar, e elas também não tinham liberdade econômica para abandonar casamentos abusivos e maridos infiéis.

À medida que as mulheres conquistaram independência econômica, não só enfrentaram o desafio da igualdade como também o superaram. Em quase todas as métricas concebíveis, as mulheres estão superando os homens na educação. E embora a disparidade salarial tenha demorado a diminuir, as evidências sugerem que isso está realmente acontecendo. (De acordo com Reeves, quando você ajusta os números, levando em conta as mulheres que tiram licença não remunerada para cuidar dos filhos, homens e mulheres recebem salários quase iguais.)

O novo roteiro social para as mulheres é, ao mesmo tempo, cheio de propósito e libertário. As garotas podem fazer qualquer coisa, como diz o slogan, inclusive — se quiserem — seguir um modelo tradicional de casamento e de família. Entretanto, de acordo com Reeves, os homens ainda não encontraram seu novo roteiro social. O antigo papel de provedor, protetor e líder espiritual da família não só é visto como algo bizarro; muitas vezes também é visto como paternalista ou coisa pior.

Para alguns progressistas, o melhor roteiro social para os homens parece ser o papel de aliado — alguém que usa de seu privilégio para ajudar outros a se erguerem. A diretora Greta Gerwig imagina esse papel, no filme Barbie, por meio do personagem Allan. Interpretado por Michael Cera, Allan é o amigo de Ken notoriamente passível de ser esquecido, deliberadamente uma nulidade amena — como acontece com muitos dos melhores papéis de Cera.

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Allan não é realmente um herói. Ele não desperta o interesse amoroso da Barbie e não sabemos o que acontece com ele no final. A própria Barbie abraça a humanidade de um corpo e de um gênero como a dádiva que deve ser. Ken reconhece o fracasso do seu próprio “Kendom” [ou Reino do Ken] e o absurdo da sua utopia, mas ficamos imaginando o que ele fará a seguir. Com Allan, realmente não nos importamos — mas esse é o ponto. Ele é apenas Allan, o aliado, e sua única função é apoiar a Barbie.

Peço desculpas se pareço duro, mas nenhum homem quer ser um Allan. Nenhum homem quer ir à guerra para ajudar a Barbie a recuperar seu reino e acabar esquecido na zona de amigos. A condição de aliado, por si só, simplesmente não é uma visão de masculinidade que tenha apelo.

Mas lhe desejo boa sorte na tarefa de encontrar uma alternativa aceitável em ambientes progressistas. Descreva outros atributos que os homens há muito abraçaram como marcas de masculinidade — como instinto de competição, agressão ou força — e logo descobrirá que eles são frequentemente tratados como patologias , indistinguíveis de um desejo tóxico de conquista sexual. Parece que a única masculinidade aceitável é aquela que historicamente sequer seria reconhecida como algo masculino.

O problema é diferente na direita, especialmente na própria direita online, onde a transgressão contra devoções progressistas às vezes representa metade da diversão (e o que mais atrai cliques). Mas, mesmo nesse grupo, o roteiro social também não se parece em nada com o antigo.

Em vez dele, encontraremos argumentos sobre como se preparar para o apocalipse econômico, como evitar óleos de sementes e sobre determinar se um pai de primeira viagem deveria trocar as fraldas do filho (aliás, ele deveria trocar muitas fraldas, e se for cristão, é quase certo que o fará).

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Ao contrário da masculinidade dos nossos avôs e bisavôs, esta masculinidade é performativa e reacionária, interessada mais na estética e na exibição nas redes sociais do que no trabalho sério e vitalício de ser um homem bom e fiel. Na medida em que deve ser levada a sério (e na maioria das vezes não é), tal visão não parece interessada na formação de virtudes que tornariam a masculinidade distintamente semelhante a Cristo — virtudes como gentileza, domínio próprio, sobriedade, compaixão e generosidade.

Os evangélicos tentaram algumas vezes fornecer um roteiro alternativo, com graus variáveis de sucesso. Embora abundem exemplos tolos de hipermasculinidade, movimentos como o Promise Keepers ou obras de escritores como John Eldredge tocaram um vasto grupo de homens — especialmente quando citavam biblicamente atributos da masculinidade que se relacionam com a paternidade humana e a paternidade de Deus.

Estes movimentos vêm e vão, e suspeito que isso tenha tanto a ver com ciclos de consumo quanto qualquer mudança cultural mais profunda. Mas a ideia central de uma visão bíblica da virtude masculina baseada na paternidade poderia repercutir independentemente do meio cultural. Embora nem todos nós seremos pais, e muitos de nós tenhamos crescido sem pais, todos partilhamos de um anseio universal por um pai — e mesmo os contornos que essa ausência assume podem informar uma visão de masculinidade. Ansiamos por uma presença que cuide de nós, alguém que seja para nós um provedor e um protetor, quando nos sentimos fracos ou vulneráveis, alguém que nos abençoe e nos encha de coragem, quando enfrentamos conflitos ou obstáculos. Também informa essa visão a doutrina da adoção, pela qual somos reivindicados como filhos e filhas por Deus, nosso Pai (Romanos 8.14-17).

Os evangélicos poderiam articular um roteiro social para este momento que dê conta das realidades econômicas de um mundo pós-feminista, sem fazer concessões em relação aos nossos compromissos teológicos sobre o significado do casamento, a natureza dos homens e das mulheres e a virtude de sermos feitos à imagem de Deus. Poderíamos celebrar as misteriosas formas como homens e mulheres são semelhantes e diferentes, sem cedermos a estereótipos ou sem entronizarmos um único arranjo econômico doméstico, proveniente da metade do século, como ideal supostamente divino.

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Poderíamos contar uma história sobre a responsabilidade única dos homens em moldar a compreensão que os cristãos têm de Deus como Pai. Poderíamos reconhecer que a força dos homens é um dom destinado a ser usado no serviço e na proteção dos outros, e que as diferenças de gênero — vistas por contraste com os atributos femininos das nossas esposas e filhas — são também um meio de graça para que sejamos dignos, e não menosprezados nem diminuídos em uma ou outra direção.

Este tipo de masculinidade poderia dar poder aos homens, mas sem nos autorizar a nos tornarmos tiranos. Poderia honrar a nossa força e, ao mesmo tempo, reconhecer que ela existe para servir aos outros. Poderia inspirar trabalho árduo e ambição, sem fomentar o engano de que um homem deve sempre se enquadrar em ideais superficiais de produtividade e de sucesso.

Johnny Manziel alcançou um sucesso como muito poucos homens conseguem, mas, ainda assim, viu-se diante da mira de uma arma. E sua história, infelizmente, não é a única. Na ausência de um roteiro significativo para as nossas vidas, os homens estão em crise. Nos últimos 30 anos, os homens ultrapassaram dramaticamente as mulheres em mortes por desespero. No ano passado, quase 40 mil homens cometeram suicídio nos EUA, quatro vezes o número de mulheres. Uma parcela crescente deles estava na meia-idade, um período da vida em que muitos homens estão especialmente famintos por um propósito.

É claro que essas mortes não podem ser atribuídas apenas à falta de um roteiro social. Mas não deveria nos surpreender o fato de que homens famintos por uma visão construtiva da masculinidade venham a se desesperar. Tal como pregar a mensagem do evangelho, comunicar a visão de uma semelhança encarnada à imagem de Cristo, como homens, é algo necessário e requer constante renovação. Precisamos de uma linguagem nova e de novas metáforas que repercutam com os anseios do momento que vivemos e que comuniquem aos homens não apenas quem podemos ser, mas também quem somos como portadores da imagem de Deus.

Nossa cultura está evitando tocar nessa questão. A igreja não pode fazer o mesmo.

Mike Cosper é o diretor da CT Media.

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