Nota da edição em português: este artigo foi escrito em 2002, mas acreditamos que ele traz reflexões importantes para os dias atuais.

“Como posso conciliar minha crença na inerrância das Escrituras com comentários nas traduções da Bíblia, dizendo que determinado versículo não se encontra ‘nos melhores manuscritos’?”
– Carol Stanley, Manchester, New Hampshire

A resposta a essa pergunta guarda um paralelismo com a resposta de Charles Spurgeon, que disse, quando lhe pediram para conciliar a liberdade humana com a predestinação divina: “Eu nunca concilio amigos”. Ele sustentou que as duas realidades se encaixam. No caso que estamos discutindo, acontece o mesmo.

Vamos falar primeiro dos manuscritos. Os livros do Novo Testamento circularam primeiramente em forma de cópias feitas à mão, e essas cópias feitas pelos monges continuaram até Gutenberg inventar a imprensa, no século 15. Qualquer um que já tenha copiado um texto à mão sabe com que facilidade letras, palavras e até mesmo linhas inteiras são deixadas de fora ou repetidas. A tradição dos manuscritos do Novo Testamento não ficou livre disso.

Além do mais, é claro que alguns copistas, ao se depararem com o que julgaram ser erros de cópia, fizeram o que pensavam ser correções. Alguns desses copistas acrescentaram à margem palavras e frases ampliadas, as quais o próximo copista incorporou ao próprio texto bíblico, por pensar que era onde elas deveriam estar. Como o processo de cópia era feito com reverência e cuidado profissional, os manuscritos variam pouco no geral, exceto por deslizes ocasionais desse tipo. A comparação de manuscritos revela muitas passagens que claramente precisam ser corrigidas neste nível de detalhe.

A versão King James do Novo Testamento foi traduzida a partir do “Textus Receptus” (texto recebido) — a tradição manuscrita predominante na época — e publicada em 1611. Novas descobertas de manuscritos levaram a pequenos ajustes nesse texto, e onde ainda houver incerteza sobre a redação exata ou a autenticidade, as margens das versões modernas honestas nos dirão isso. A nova King James, por exemplo, embora ainda siga o “Textus Receptus”, traz notas conscienciosas dessas coisas, à medida que ocorrem.

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Não havendo outros fatores que causem diferenças, os manuscritos são “melhores” quanto mais próximos forem do original — isto é, quando forem de data mais próxima do original.

No Novo Testamento, apenas uma palavra em cada 1 mil gera algum tipo de dúvida, e nenhum ponto de doutrina é perdido, quando versículos que não se encontram “nos melhores manuscritos” são omitidos. (Como exemplos, veja Mateus 6.13b, 17.21, 18.11; Marcos 9.44, 46, 49, 16.9-20; Lucas 23.17; João 5.4; e Atos 8.37). Tais têm sido “o cuidado e a providência singulares” de Deus em preservar sua Palavra escrita para nós (Confissão de Westminster I.viii).

Então, como tudo isso se relaciona com a própria fé do cristão na inerrância bíblica — isto é, com a crença na total verdade e confiabilidade do texto verdadeiro e de tudo o que ele ensina?

Segundo a visão de Jesus e de seus apóstolos, a Sagrada Escritura é Deus pregando, instruindo, mostrando e nos contando coisas, e testificando de si mesmo por meio do testemunho humano de profetas, poetas, pessoas que narram a história de um ponto de vista teológico e pessoas que observam a vida de um ponto de vista filosófico. A inerrância da Bíblia não é a inerrância de qualquer texto ou de qualquer versão publicada, nem é a inerrância da interpretação de ninguém, como também não é a inerrância de quaisquer lapsos dos escribas ou de acréscimos piedosos, mas inautênticos, incorporados durante a transmissão do texto.

Em vez disso, a inerrância das Escrituras relaciona-se com o significado expresso pelo escritor humano em cada livro e para com todo o corpo de verdade e sabedoria reveladas da Bíblia.

A crença na inerrância envolve um compromisso por antecipação de receber como algo que vem de Deus tudo o que a Bíblia — ao se interpretar para nós, por meio do Espírito Santo, de maneira natural e coerente — ensina. E assim se molda a nossa compreensão da autoridade bíblica.

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Portanto, os inerrantistas devem dar as boas-vindas ao trabalho dos especialistas em crítica textual, que estão sempre tentando eliminar o que não é autêntico, e nos mostrar exatamente o que os escritores bíblicos escreveram, nem mais nem menos. O caminho para a mente de Deus é por intermédio da mente dos escritores [escolhidos por Deus], exatamente como se expressaram, sob sua direção, em suas próprias palavras, conforme eles as escreviam.

A crítica textual está a serviço da inerrância; ambas são amigas. A inerrância valoriza o significado das palavras de cada escritor, enquanto a crítica textual verifica se as palavras que temos de cada escritor são puras e intactas. Essas duas sabedorias são necessárias, se quisermos nos beneficiar plenamente da Palavra escrita de Deus.

J.I. Packer foi editor executivo da CT e professor de teologia no Regent College, em Vancouver.

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