Com toda a probabilidade, na história da década de 2020, a COVID-19 será uma nota de rodapé. Quando nossos bisnetos pensarem na década de 2020, eles provavelmente se lembrarão da pandemia tão pouco quanto nós, até março do ano passado, nos lembrávamos da gripe espanhola de 1918-1919.

Pandemias e outros desastres naturais são eventos que raramente marcam a história por si próprios. Em vez disso, os desastres naturais aceleram e intensificam realidades e tendências culturais.

É por isso que meus colegas da organização Praxis e eu escrevemos um artigo, em março de 2020, argumentando que a persistente “era do gelo”, os efeitos de longo prazo da COVID-19, seria mais sobre economia do que epidemiologia. A era do gelo de pequenas proporções não seriam tanto os doze a dezoito meses do “inverno” pandêmico em si, mas o deslocamento e a mudança social que seriam deixados em seu rastro.

Hoje vemos três grandes deslocamentos que não foram causados pela pandemia, mas acelerados por ela, e que devem moldar o horizonte da ação cristã na próxima década.

Primeiro, temos a recuperação em forma de K.

Na primavera passada, especulávamos se a recuperação econômica seria em forma de V, U ou L, mas na verdade ela foi em forma de K. Algumas classes de ativos, como grandes ações públicas, têm se saído incrivelmente bem. Enquanto isso, dezenas de milhares de pequenas empresas que eram viáveis antes da pandemia fecharam totalmente as portas.

O trabalho de recuperação tomou a forma de K. Quase ninguém gostou do ano passado, mas se a pessoa pudesse trabalhar em casa com telas, palavras e símbolos seria muito mais suportável e factível do que trabalhar fora de casa com pessoas ou coisas.

Mesmo dentro das empresas, existem dinâmicas em forma de K. Como a Sequoia Capital escreveu em março, “estamos vendo uma diferença entre as métricas de desempenho de alguns negócios e como as pessoas nessas empresas estão se sentindo”. Isso soa verdadeiro.

Isso é uma aceleração de tendências já existentes. Há décadas, a economia capitalista global tem visto algo que os estatísticos chamam de divergência média-mediana, com vastos benefícios para os afortunados e maior precariedade para os demais.

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Para muitos, a experiência do ano passado foi em forma de K. A maioria de nós encontrou maneiras de prosperar este ano, até mais do que esperava. Mas outros enfrentam perdas terríveis ou estão inseridos em comunidades que enfrentaram perdas terríveis.

Não vimos a recuperação em forma de K chegar, mas poderíamos e talvez devêssemos ter visto, pois a forma de K é a forma do nosso mundo.

A recuperação em forma de K não é de forma alguma a única história que será contada sobre 2020 e depois.

O recurso mais importante em qualquer sistema, especialmente quando está sob pressão, é a confiança. Este ano, descobrimos de novo quantas de nossas instituições têm a forma de K — atendendo a algumas parcelas da população de maneira bastante eficaz, ao mesmo tempo em que atende a outras de forma desesperadora. Isso dificilmente seria uma novidade. Mas o que se acelerou no último ano foi um colapso da confiança de que essas instituições possam ser redimidas.

Gostaríamos de acreditar que as instituições sociais são construídas sobre os alicerces da justiça, de modo que possam ser aprimoradas para servir bem a todos. Mas na década de 2020 — e esta é a segunda tendência de longo prazo que se acelerou no ano passado — mais e mais americanos acreditam que essas instituições são fundamentalmente injustas, projetadas para servir e proteger apenas a metade superior do K.

Essa era a verdade para muitos dos que invadiram o Capitólio dos Estados Unidos, em 6 de janeiro de 2021, e estavam convencidos de que as instituições ligadas a eleições democráticas do país haviam sido corrompidas. Também era a verdade para muitos daqueles que protestaram no verão de 2020, após o assassinato de George Floyd, pedindo a abolição de instituições de justiça pública sob o argumento de que são irremediavelmente corruptas.

E, não por coincidência, essa erosão da confiança social ocorreu em uma época de maciça compressão da banda larga — a terceira tendência que a pandemia acelerou.

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Quando as pessoas se encontram presencialmente, é bem provável que estejam trocando gigabits por segundo de informação. Por meio de vários canais sensoriais — visão, audição e muitos mais — nós absorvemos e transmitimos o que pensamos e, mais importante, o que sentimos. Durante a pandemia, o fluxo de informações diminuiu drasticamente. Passamos dos gigabits presenciais para os megabits no Zoom — uma redução da ordem de mil vezes. Mensagens de texto, tweets e postagens no Facebook são medidos em kilobits — uma compressão da ordem de mais mil vezes.

Quando comprimimos informações, perdemos o contexto. Perdemos emoção. Podemos transmitir os “fatos”, mas perdemos o significado. Não há problema em enviar uma mensagem de texto a seu cônjuge pedindo para ele comprar leite no mercado. No entanto, quase sempre não é adequado enviar uma mensagem de texto para dizer que você está arrependido por ter esquecido o aniversário dele.

A confiança pode ser quebrada à distância (como naquela mensagem de texto!), mas é quase impossível restaurá-la à distância.

A maior parte do verdadeiro desafio em qualquer conflito se resume a esta questão: Você entende como era estar no meu lugar no momento da ruptura, no momento em que as coisas deram errado? E, quase sempre, para atingir esse nível de empatia (para ter alguma noção de como era estar no lugar do outro) e comunicar essa empatia (para que o outro acredite que eu o entendo) requer presença pessoal.

Essas tendências — a dinâmica em forma de K, a perda da confiança social e compressão da banda larga — já existiam antes da COVID-19, mas o vírus as acelerou. Nenhuma recuperação real desta pandemia será completa sem que tais tendências sejam abordadas.

De fato, tenho me perguntado: “Como se recuperar de uma recuperação em forma de K?”

Existe um modelo bíblico que trata de como se recuperar de um desastre multifacetado. O mundo antigo também tinha essa forma de K. Doenças e fome podiam levar a dívidas incapacitantes. A guerra podia deslocar famílias e comunidades, até mesmo nações inteiras. Tudo isso levava à escravidão — a derradeira perda de liberdade, a derradeira realidade social em forma de K.

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E para uma sociedade que estava sempre sob risco de adquirir essa forma de K, Deus prescreveu o Jubileu.

O Jubileu, descrito principalmente em Levítico 25, era uma reinicialização da economia. A cada cinquenta anos, dívidas eram perdoadas para que nenhuma família pudesse acabar permanentemente do lado errado do infortúnio ou mesmo do mau comportamento. A terra deveria ser devolvida às famílias, evitando a concentração de riqueza em um número cada vez menor de mãos e evitando a criação de uma perpétua classe servil de sem-terras.

O Jubileu era uma redefinição institucional. O poder não poderia acabar beneficiando permanentemente uma pequena elite, nem poderia acabar em suas mãos.

O Jubileu era um retorno de pessoas ao lugar em que podiam ser conhecidas. Ao retornar às suas terras sem pendências, mesmo aqueles que haviam perdido tudo poderiam ser livrados da falta de moradia e da alienação, e restaurados ao lar e à reconciliação.

Imagine os efeitos desse tipo de perdão institucional, econômico e nacional. Imagine a alegria quando aqueles que terminaram na escravidão eram libertados. Imagine a liberdade, também, daqueles que eram “vencedores” no antigo sistema, por não ter mais de coagir nem dominar seus irmãos e irmãs.

Este seria um mundo onde, como disse Isaías, as boas novas seriam anunciadas aos pobres. Que boas novas eram essas? Que eles não eram mais escravos por suas dívidas; que sua perda, sua desconfiança, sua vergonha haviam sido apagadas; que o dia do Senhor havia chegado.

O júbilo é fruto do perdão. O júbilo é fruto da misericórdia. O júbilo é fruto de o verdadeiro Deus ser conhecido, adorado e obedecido.

Em seu primeiro discurso público em Lucas 4, Jesus disse que este dia havia se cumprido. Oramos por isso cada vez que fazemos a oração que ele nos ensinou, em Mateus 6. “Perdoa as nossas dívidas, assim como nós perdoamos os nossos devedores”. Esta é uma oração para que o Jubileu venha. Para que a confiança seja restabelecida por arrependimento, perdão e misericórdia genuínos e de alto preço.

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Mas estamos em um momento perigoso — embora o perigo da pandemia pareça estar diminuindo nos Estados Unidos, e estejamos orando para que diminua rapidamente em outras partes do mundo também.

Cem anos atrás, a gripe espanhola, que veio na esteira da Primeira Guerra Mundial, também recuou. E foi seguida pelos loucos anos 20. Podemos entender plenamente o que as pessoas estavam sentindo na época. O verão deste ano será assim em alguns lugares: euforia e júbilo.

Mas os loucos anos 20 foram seguidos pela década mais devastadora do século 20, pelo menos em termos econômicos e geopolíticos. Porque, na verdade, eles foram construídos sobre uma ordem mundial precária em forma de K.

Mais notavelmente, o Tratado de Versalhes impôs à Alemanha uma dívida por reparações de guerra de 132 bilhões de marcos de ouro — 269 bilhões de dólares em valores atuais. Foi um acordo calamitoso que, sem dúvida, representou um fator importante no colapso do sistema financeiro alemão em 1931. Dentro de um ano, isso desencadeou crises semelhantes no Reino Unido e nos Estados Unidos, e desencadeou uma hiperinflação na Alemanha que contribuiu diretamente para a ascensão do nacional-socialismo.

Os loucos anos 20 foram um júbilo sem Jubileu. Cuidado com o júbilo sem Jubileu.

Como serão os nossos anos 20? Muito do que moldará esta década está além de nosso poder. E pode parecer que uma redefinição abrangente, na escala do Jubileu, seja algo inimaginável. Mas também era assim no mundo dos primeiros cristãos. A oração que Jesus ensinou a eles reforçava a necessidade absoluta do perdão no mesmo patamar do Jubileu, e também enfatizava que esse perdão poderia começar com um compromisso pessoal e local: como perdoamos nossos devedores .

Não podemos redefinir todas as dinâmicas em forma de K em ação no mundo, mas podemos empregar nossos recursos pessoais e organizacionais para cuidar especialmente daqueles que estão do lado errado dessa “recuperação”. Restaurar a confiança nas instituições sociais de maior proporção pode parecer algo além da nossa capacidade, mas muitos de nós temos oportunidades todos os dias de tornar mais verdadeiras e confiáveis as organizações e comunidades das quais fazemos parte. E podemos escolher ir na direção oposta à da compressão da banda larga, despendendo tempo e recursos em encontros presenciais, frente a frente, os quais são essenciais para o conflito saudável e a restauração criativa.

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Este é um momento de felicidade. Mas também é um momento de ação redentora decisiva — um momento de garantir que todas as nossas estratégias, todas as nossas operações e toda a nossa liderança tenham a forma de J, e não de K.

E, bem mais do que podemos imaginar agora, o transcurso da década de 2020 pode depender de podermos oferecer um sabor de Jubileu a um mundo em forma de K.

Andy Crouch é parceiro de teologia e cultura na organização Praxis. De 2015 a 2017 foi editor executivo da CT.

Este artigo foi adaptado de uma palestra proferida no 2021 Praxis Redemptive Imagination Summit, em 17 de maio. Este episódio do podcast The Redemptive Edge explora essas ideias em maior profundidade.

Traduzido por Mariana Albuquerque

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