O que torna o cristianismo difícil?

Há muitas respostas possíveis para essa pergunta. A forma como você a responde revela muito não só sobre você — sobre seu temperamento, sua condição de vida, sua mente e seu coração —, mas também sobre o contexto em que vive. Cristãos que vivem em diferentes épocas e diferentes lugares responderiam essa pergunta de forma bem diferente.

Suponha, por exemplo, que você vivesse em Jerusalém, poucas décadas depois da crucificação de Jesus. O que tornaria o cristianismo difícil [no seu caso] não seria a crença no divino ou a grande distância que o separaria dos “tempos bíblicos”. Afinal, você vive nos tempos bíblicos, e todos acreditam no divino. Não, o que torna o cristianismo difícil no seu caso é o sufocante ardor da perseguição pela lei e da rejeição social. Confessar o nome de Cristo provavelmente piora sua vida de maneiras tangíveis: sua família pode renegá-lo; seu patrão pode abusar de você; seus amigos podem ridicularizá-lo. As autoridades podem levá-lo para interrogatório, se acharem que você parece alguém que promove a desordem.

Ou suponha que você seja uma freira que vive em um convento medieval. Você viverá toda a sua vida ali, e nunca vai se casar, ter filhos ou ter sua própria casa. Está comprometida com Deus até a morte. Você é o que as pessoas mais tarde chamarão de “mística”, embora esse termo seja um tanto árido para quem tem visões que muitas vezes se experimentam como sofrimento: vislumbres extáticos do fogo consumidor que é o Senhor vivo. O que torna o cristianismo difícil [no seu caso]? Você certamente não se pergunta sobre a existência de Deus — pois viu Deus com seus próprios olhos. Fama e riqueza também não são fontes de tentação para você; sua vida está escondida do mundo. Mas, mesmo assim, ela não é nada fácil. A fé continua sendo difícil.

Ou imagine que você seja outra pessoa, em outro lugar: você é um padre, responsável por uma paróquia rural, no início dos tempos modernos na Inglaterra. Você vive em uma época de agitação religiosa e política. A Reforma derrubou por terra antigos padrões de culto e expectativas de unidade. Enquanto guerras religiosas assolam o continente, a sua responsabilidade, decididamente nada espetacular, é um simples vilarejo de famílias de agricultores. O que torna o cristianismo difícil no seu caso? Esse conflito de fundo pode ser parte do problema, mas algo muito mais próximo é a rotina que entorpece, esse cotidiano rotineiro do tempo, das colheitas, dos casamentos, das gestações, das doenças, dos funerais — Advento, Natal, Quaresma, Páscoa — entra ano, sai ano; lavar, enxaguar, e repetir tudo de novo.

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Se eu fizesse essa mesma pergunta a meus amigos ou a meus alunos na universidade, nos Estados Unidos de hoje, acho que sei o que eles diriam: o que torna o cristianismo difícil no tempo e no lugar em que vivemos é a dúvida.

Dúvida sobre a existência de Deus; sobre a ressurreição de Jesus; sobre os milagres; sobre os anjos, os demônios e os dons do Espírito Santo; sobre os textos bíblicos ou a história por trás deles ou sobre a igreja que os legou a nós; dúvida sobre a credibilidade de todos os itens anteriores. E todas essas dúvidas estão à beira de um enorme abismo entre o “antigamente” e o “aqui e o agora”: opressão e escravidão; superstição versus liberdade; direitos humanos e ciência. Devemos de fato aceitar sem questionar a fé de nossos ancestrais, quando somos muito melhores do que eles em tantos aspectos — como tendemos a pensar?

Não estou descrevendo ateus, apóstatas ou “exevangélicos” aqui. É deste modo que muitos cristãos comuns se sentem. Ou, pelo menos, é nestas águas que eles nadam, este é o pensamento incômodo que trazem no fundo da mente, esta é a fonte semiconsciente da inércia que sentem, quando o alarme toca no domingo de manhã. Os cristãos americanos não enfrentam o Coliseu, mas essa pressão emocional e intelectual é bem real. As dúvidas se acumulam.

E não ajuda o fato de a dúvida estar na moda. A dúvida é sexy, e não apenas na cultura em geral. Não consigo contar o número de vezes que um pastor ou professor cristão me disse que a dúvida é um sinal de maturidade espiritual. Que fé sem dúvidas é algo superficial, uma mera fase de lua de mel. Que a dúvida é o outro lado da fé, uma espécie de amiga da fidelidade. Que a existência de dúvida é um sinal de uma mente teológica saudável, e sua ausência significa... — bem, você mesmo pode completar esta frase.

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O grupo favorável à dúvida acerta em cheio em duas coisas importantes. Primeira, eles querem espaço para fazer perguntas honestas. Segunda, eles querem remover o estigma da dúvida.

Eles querem que a igreja seja um lugar onde a dúvida não seja uma patologia, onde a experiência da dúvida não seja um fracasso moral, onde a dúvida gerada por perguntas ou as perguntas geradas pela dúvida sejam bem-vindas, acompanhadas e exploradas. Uma igreja como essa seria conhecida por uma cultura de hospitalidade espiritual. Os crentes comuns poderiam dizer em voz alta o que realmente lhes tira o sono à noite, em vez de ficarem calados por medo de julgamento ou rejeição.

Todos nós deveríamos querer essas mesmas coisas. Onde as igrejas erraram, os pastores devem corrigir o erro. Não queremos que as crianças e os jovens pensem que perguntar é algo ruim, e muito menos que pensem que seguir a Jesus significa acreditar em coisas impossíveis antes mesmo do café da manhã.

Em que ponto, então, os defensores da dúvida erram? Vejo que eles erram em quatro pontos.

Primeiro, os defensores da dúvida universalizam uma experiência que é particular. É verdade que as dúvidas não são falsos problemas passíveis de serem facilmente resolvidos com um pouquinho de treinamento espiritual. Mas será que acreditar em um Deus invisível ou na concepção virginal de Jesus é o que torna o cristianismo difícil para todos, em todos os lugares, sempre? Quando lemos a literatura cristã que elogia a dúvida ficamos com essa impressão.

Mas se olharmos para a história da igreja, como fiz pouco acima, fica evidente que o que torna o cristianismo difícil depende do contexto. A exposição à vida e aos escritos de outros discípulos ao longo dos séculos, que viveram em épocas, lugares e culturas muito diferentes, coloca nossos desafios em perspectiva. Eles são com tanta frequência pessoais, e não gerais; paroquiais, e não cósmicos. Eles não são inevitáveis ou inalteráveis. O cristianismo é bem maior do que o Cinturão da Bíblia ou o Ocidente secular.

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Segundo ponto: esses defensores tendem a descrever a dúvida não como um mero desafio universal, mas como uma característica necessária da fé madura. Temos em ação aqui uma mescla de viés de seleção com classismo: Os que duvidam são, em geral, pessoas tipicamente abastadas e intelectualizadas, com diploma universitário, que trabalham em laptops. Nada disso é ruim; eu mesmo me encaixo nesse perfil.

Mas nem todos se encaixam, e nossa experiência de fé não é universal. Essa tendência de lutar contra a dúvida não é um componente essencial do conhecimento de Deus, um desafio que todo cristão sério deve enfrentar. Simplesmente não é verdade que a maturidade fiel é sempre marcada pela dúvida. Será que Moisés algum dia se perguntou se Deus é real? Será que Paulo duvidou de sua visão do Senhor ressuscitado? E quanto a Juliana de Norwich, nossa freira não hipotética? Será que a fé singela e confiante de tantos de nossos anciãos espirituais — das proverbiais senhorinhas que ocupam os bancos das igrejas — precisa realmente ser “problematizada”, antes de ser digna do nosso respeito? A pergunta responde a si mesma.

Terceiro ponto: os defensores vão longe demais ao fazer da dúvida uma virtude. A dúvida não é pecado, mas isso não significa que seja desejável. Deus pode usá-la para o bem; ela pode muito bem ser um passo crucial na jornada de uma pessoa com Cristo. Mas não precisamos valorizá-la nem celebrá-la. Em suma, a dúvida não deve ser elogiada nem culpada. Na maioria dos casos, ela é um espinho na carne.

Na melhor das hipóteses, a dúvida é uma escada a ser escalada. Mas as escadas não são fins em si mesmas. Nós as usamos para chegar a algum lugar, para concluir algum trabalho. Permanecer para sempre em dúvida perpétua é como construir uma casa sobre uma escada — algo tecnicamente possível, mas longe do ideal. Se alguém recomendasse uma escada como solução para resolver sua necessidade de uma casa, você certamente questionaria essa recomendação.

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Por fim, o quarto ponto: os defensores da dúvida descaracterizam a natureza das perguntas. Perguntas não são o mesmo que dúvidas. Tomás de Aquino fez milhares de perguntas em sua curta vida. Somente as Confissões de Agostinho contêm mais de 700 perguntas. Ora, e o que mais é um catecismo senão perguntas seguidas de respostas? Mas aí está o problema. A dúvida começa com uma perda de confiança ou de credibilidade; perguntas não começam assim. Meus filhos me fazem perguntas todos os dias, não porque duvidam de mim, mas porque confiam em mim.

Por essa razão, os santos e os místicos adoram perguntas, inclusive as que não podem ser respondidas nesta vida. As perguntas surgem da nossa confiança em Deus e fomentam essa confiança. As perguntas fazem crescer a fé.

Disferenciar perguntas de dúvidas não significa elogiar as primeiras ao se estigmatizar de novo as segundas. Significa esclarecer para os crentes que, embora a dúvida muitas vezes nos leve às perguntas, as perguntas nem sempre (nem mesmo normalmente) nos levam a ter dúvidas. Essa é uma boa notícia para os ansiosos entre nós. Pergunte à vontade, a igreja deveria dizer. O Senhor agradece suas perguntas.

O que, então, torna o cristianismo difícil? Existe uma resposta para isso, que se aplique a todos nós? De fato, acredito que exista.

O que torna o cristianismo difícil é a fé, embora não no sentido que muitos de nós esperamos. Para muitos cristãos criados na igreja, significa certeza mental e emocional e, portanto, a vida cristã é definida como acreditar o máximo que puder em coisas difíceis. Segundo esse modelo, quando uma pergunta, como uma fera selvagem, tentar entrar em sua barraca, você tem apenas duas opções: expulsá-la — de alguma forma crendo com ainda mais afinco — ou aceitar que sua fé é fraudulenta e desistir dela. Ter fé significa que preciso me esforçar para acreditar em coisas estranhas que pessoas “modernas” em uma era “científica” acham não críveis. Com uma alternativa como essa, não é de se admirar que a dúvida pareça atraente!

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Mas ter fé não é manter com desespero a certeza interior. A fé é traduzida com a mesma precisão (talvez até com mais precisão) por fidelidade. Ter fé é manter a fé, manter a fidelidade a Deus, confiar nele e, por sua vez, tornar-se digno de confiança. O que é universalmente difícil no fato de ser um cristão é ser fiel ao Senhor, em qualquer circunstância.

Quer vivamos em tempos de perseguição ou sozinhos em um convento, em uma época de divisão e guerra ou em uma época de ceticismo e riqueza, na maré alta da cristandade medieval ou sob o domínio islâmico no Irã moderno, o chamado de Cristo é exatamente o mesmo. Em todas as circunstâncias, Cristo nos convida a tomar nossa cruz e a segui-lo até o Calvário (Lucas 9.23). Em outras palavras, somos chamados para morrer.

Às vezes, nossas mortes são literais; às vezes, são religiosas; às vezes, são sociais, financeiras ou familiares. Às vezes, são todas essas e muitas mais (Gálatas 2.20). Em todos os casos, apesar de todas as diferenças superficiais, tomamos sobre nós o mesmo jugo. Cristo nos promete que esse jugo é suave e o seu fardo é leve — e é mesmo (Mateus 11.30). Mas esse morrer para si mesmo que ele exige é uma crucificação diária, que tira da carne o poder de nos manter sob seu domínio.

A dúvida pode fazer parte dessa luta. É uma luta real, para a vida inteira e comum a todos nós. A luta, porém, não é a questão. A questão é para onde estamos indo. É quem estamos seguindo. A questão é que a cruz não é o destino final; que a morte não é o fim (1Coríntios 15.26, 55-57). Não estamos condenados a lutar, a sofrer e a nos questionar para sempre. Quando sairmos do túmulo, deixaremos tudo isso para trás. Como vestes mortuárias, todas as dúvidas que antes nos atormentavam acabarão empilhadas no chão. E livres de todo fardo, caminharemos para a vida.

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Brad East é professor associado de teologia na Abilene Christian University. É autor de quatro livros, entre eles The Church: A Guide to the People of God (A Igreja: Um Guia para o Povo de Deus) e Letters to a Future Saint: Foundations of Faith for the Spiritually Hungry (Cartas para um Futuro Santo: Fundamentos da fé para os que têm fome espiritual).

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