Os americanos compram milhões de livros de autoajuda todos os anos, mas nós, filhos da (pós-)modernidade, não fomos os primeiros a apreciar esse gênero. Ele já era popular no mundo antigo. No mínimo desde o quarto século a.C. existem manuais militares prontos a aconselhar sobre como escolher o melhor cavalo de guerra e como conduzir um cerco de forma eficaz — ou o contrário, ou seja, como sobreviver sob cerco. Os antigos também davam conselhos sobre outros tópicos, que iam desde culinária até interpretação de sonhos, agricultura, oratória, amizade e como viver bem na velhice.

Mas há um tópico sobre o qual os pagãos não escreviam: cuidar dos outros. Notei essa ausência pela primeira vez ao pesquisar as atitudes populares em relação às mulheres — especialmente as mães — na Antiguidade e nos dias de hoje. Essa pesquisa, por sua vez, faz parte de um projeto de livro em andamento que examina as semelhanças entre as abordagens pagãs pré-cristãs em relação a questões da vida e as atitudes pós-cristãs modernas em relação a esses mesmos tópicos.

Essa ausência diz muito, assim como diz o surgimento do novo subgênero de escritos sobre cuidados pastorais e cuidados práticos, nos primeiros séculos da igreja. Os historiadores estudam, e com razão, o que está presente no registro documental; no entanto, considerar as ausências pode ser não menos esclarecedor, como é o caso aqui. Até que os primeiros líderes cristãos começassem a escrever cartas, tratados e manuais sobre o cuidado com as mulheres solteiras, os pobres, os enfermos e outras pessoas vulneráveis, esse tipo de escritos não existiam.

Nesses documentos, encontramos um cuidado pastoral de amplo alcance, que inclui não só o tipo de cuidado espiritual e relacional que o termo mais frequentemente abrange hoje, mas também a atenção a necessidades práticas. Esses textos dão testemunho, portanto, do papel dos ministérios de compaixão — e de como a igreja primitiva via esses ministérios como fundamentais para o uso saudável do poder pastoral.

Palavras de misericórdia ditas sobre obras de misericórdia incentivaram a criação de redes mais robustas de cuidado. Vale a pena revisitar essa história em uma época em que escândalos sobre abuso de autoridade pastoral, envolvendo pessoas de alto escalão, minaram a confiança de muitos cristãos na liderança da igreja.

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A ênfase no cuidado contracultural com os outros é abundante no Novo Testamento; portanto, não é surpresa que esse tipo de texto tenha se espalhado, à medida que a igreja crescia. Em Atos 2.44-46, por exemplo, ouvimos falar de crentes erradicando a pobreza e as necessidades dentro da incipiente igreja de Jerusalém.

Ainda assim, o surgimento de tratados mais formais sobre cuidados pastorais, a partir do terceiro século d.C., é particularmente notável, pois essa foi, sem dúvida, a pior época para os cristãos viverem no Império Romano. O assassinato do imperador Severo Alexandre, em 235 d.C., desencadeou o período que os historiadores chamam de “crise do terceiro século”. Desse momento até a ascensão de Diocleciano ao poder, em 284 d.C., os imperadores ascendiam nas fileiras militares, assumiam o poder e, depois, eram assassinados, em rápida sucessão.

Enquanto isso, mais de 200 anos de desvalorização da moeda finalmente culminaram em uma inflação fora de controle. Uma pandemia misteriosa chegou, por volta de 250 d.C., e circulou por duas décadas, deixando um número terrível de mortos em seu rastro. Embora seja impossível calcular os números para todo o império, estima-se que a peste tenha matado 62% da população da cidade de Alexandria, segundo sugere o historiador Kyle Harper. E a primeira perseguição aos cristãos em todo o império começou em 251 d.C.

Em meio a todas essas crises, os pastores do terceiro século estavam ministrando a pessoas que viviam em uma época de turbulência que parece muito semelhante à nossa. Como eles lidaram com isso?

Algo revelador é que os sermões, tratados e cartas da época não demonstram muito interesse entre os cristãos no acúmulo de poder convencional. Eles não levam em consideração como os cristãos poderiam influenciar a política, o governo ou a economia, e não lutam contra a perseguição religiosa — algo que pessoas comuns tinham pouca chance de impactar, de qualquer forma. Em vez disso, esses primeiros pastores enfatizavam a obrigação dos cristãos de amar o próximo em palavras, atos e com dinheiro.

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Um exemplo particularmente bem documentado é o do ministério de Cipriano de Cartago, datado de cerca de 248 d.C até seu martírio, em 258 d.C. No início de seu ministério, Cipriano escreveu On Works and Alms [Sobre as boas obras e a esmola], um tratado no qual ele chegou ao ponto drástico de deixar de fora da mesa da Ceia aqueles que não praticassem tais atos de amor. Seus corações, segundo Cipriano argumentava, visivelmente não eram convertidos.

Em outro tratado, On Mortality [Sobre a mortalidade], que pode ter começado como um sermão, Cipriano repreende aqueles que se recusavam a cuidar dos doentes e moribundos durante a peste. Sua descrição dos sintomas da pandemia sugere que seu conhecimento sobre ela veio da observação em primeira mão, cuidando de pessoas infectadas.

As cartas de Cipriano escritas nessa época também estão repletas de exortações em prol do cuidado pastoral. Certa vez, ele respondeu ao pedido de conselho de outro pastor sobre como lidar com um novo convertido, cujo trabalho como ator e professor de teatro era considerado escandaloso pela congregação local. (Essa era uma das profissões mais desonrosas do mundo romano e, devido à sua associação com a adoração pagã, era especialmente desonrosa para um cristão).

A resposta de Cipriano não aconselha a disciplina, mas o cuidado: O convertido tem algum outro meio de sustento? Se não tiver, a igreja deve cuidar dele, diz Cipriano — até mesmo oferecendo-se para apoiar financeiramente o próprio convertido, se necessário.

Palavras como essas não eram apenas fiéis [à Escritura]. As evidências históricas sugerem que elas também atraíam pessoas. O cristianismo no Império Romano cresceu de menos de 1% da população, em 200 d.C., para perto de 10%, um século depois.

Esse crescimento é particularmente notável e francamente surpreendente, considerando o aumento da perseguição nessa mesma época. Por que, quando sabiam que a conversão poderia significar a morte, mais pessoas do que nunca vieram para a igreja? O sociólogo Rodney Stark argumentou que foi devido ao trabalho de cuidado da igreja, tanto prático quanto pastoral, que atraiu os convertidos e levou a esse crescimento explosivo. O testemunho de boas palavras combinado com boas obras produziu frutos abundantes.

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Será que o mesmo pode ser dito de nós, hoje? Se eu fosse um historiador que vivesse séculos depois, e estivesse estudando evidências documentais sobre as igrejas nos Estados Unidos, no início do século 21, provavelmente eu teria a impressão de que os cristãos de nossa época estão fazendo sobretudo duas coisas: sofrendo abusos de autoridade espiritual e lidando com as consequências desses abusos.

Afinal de contas, esses são os tópicos de tantos e tantos livros, artigos e relatórios. É importante esclarecer os abusos e trabalhar para evitá-los no futuro, principalmente porque a justiça é importante para um Deus justo. No entanto, o que estamos perdendo, se essas discussões engolirem muitas outras? Qual é a ausência marcante no registro documental da igreja contemporânea? Eu diria que é a ausência de discussões robustas sobre o uso saudável do poder pastoral para cuidar de nossas comunidades.

O exemplo da igreja primitiva nos lembra que, se falarmos apenas sobre o que a igreja deve erradicar — sobre o que não devemos ser nem fazer como cristãos —, podemos perder as discussões sobre quem e o que somos chamados a ser. E isso significa que perderemos oportunidades de transformar a cultura da igreja para melhor.

A autoridade e o cuidado pastoral saudáveis, nos dias de hoje, devem ser uma parte essencial das nossas discussões e esforços, assim como eram nos primeiros dias do cristianismo. Não podemos ignorar a importância de nossas palavras — o que os pastores e outros líderes da igreja falam e escrevem — para promover mudanças nas igrejas locais e em suas comunidades mais amplas.

Portanto, por um lado, sim, devemos condenar o “púlpito abusivo” e os apelos para que a igreja busque o poder político em um momento de crise. Ao mesmo tempo, mais apelos ainda para desmascarar o abuso e combatê-lo não são suficientes. Também precisamos de incentivo, vindo do púlpito e em escritos, que parta de líderes cristãos e fale sobre questões que sempre fizeram parte do testemunho contracultural da igreja em um mundo cruel: o cuidado prático e espiritual com os pobres, os enfermos, as viúvas, as mães solteiras, os órfãos e os imigrantes (Tiago 1.27).

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Testemunhei o efeito desse tipo de incentivo em uma congregação da Igreja Presbiteriana da América em que meu marido e eu fomos membros por sete anos, antes de nossa recente mudança para outro país. Na época em que nos filiamos a essa congregação, o pastor decidiu enfatizar a adoção e o acolhimento familiar de crianças e adolescentes como ministérios essenciais para nossa igreja. Naquela época, havia pouquíssimos lares de acolhimento em nossa região, e a demanda excedia em muito a oferta.

A generosidade do pastor em fazer desse cuidado com a comunidade local uma prioridade deliberada da igreja teve efeitos significativos na congregação. O número de famílias adotivas e de lares de acolhimento na igreja cresceu. Um novo ministério criou um serviço de entrega de refeições durante todo o ano, bem como outras estruturas de apoio para ajudar os lares de acolhimento. A conscientização da igreja sobre necessidades relacionadas na comunidade local também aumentou, levando a outras oportunidades de ministério. Todo o caráter de nossa igreja mudou, devido ao foco do nosso pastor no cuidado pastoral e prático.

Os registros sobre o ministério de Cipriano também nos lembram que palavras e obras de cuidado têm o poder de provocar mudanças nas igrejas locais. Os cristãos da igreja primitiva não eram menos pecadores do que nós, nem menos propensos à fraqueza e ao cansaço espiritual. Mas com líderes que apontavam o rebanho para Jesus, falando, escrevendo e dando o exemplo do cuidado, eles transformaram toda a sua cultura. Nada poderia ser mais verdadeiro para nós, hoje.

Nadya Williams é autora de Cultural Christians in the Early Church [Cristãos Culturais na Igreja Primitiva, com lançamento previsto para novembro de 2023]. Seu próximo livro, Priceless, está sob contrato com a IVP Academic. Ela é editora de resenhas de livros da Current, onde também edita o blog The Arena.

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