Há futuro para o complementarismo? Eu não estou questionando se o conceito em si da complementaridade entre homens e mulheres, ordenado por Deus, continuará a existir. Aqueles de nós que defendem o princípio da igualdade e distinção entre os gêneros entendem que esse conceito está fundamentado nas próprias Escrituras. Na verdade, refiro-me ao complementarismo como um movimento específico, um arcabouço coerente de algumas dessas convicções bíblicas.

Eu gostaria muito de poder continuar me descrevendo como complementarista por convicção, acreditando que as Escrituras prescrevem papéis específicos para homens e mulheres na igreja e no lar. Mas, nos últimos anos, o crescente cancelamento, além da cooptação e da canibalização do complementarismo como conceito me levaram a questionar se continuarei a usá-lo para descrever minhas convicções.

Desde que a palavra complementarismo foi usada pela primeira vez, no final da década de 1980, para descrever ou delimitar as crenças teológicas que sustento, o conceito tem sido alvo de muitas críticas. Como cristãos, não devemos temer perguntas; pelo contrário, devemos acolher críticas saudáveis e respeitosas. Elas nos fazem questionar nossas convicções, identificar nossos pressupostos tácitos e crescer em nossa compreensão e conhecimento de Deus.

O cancelamento, por sua vez, é diferente. Não é dizer simplesmente: “Acho que você está errado, e aqui está o motivo”. Cancelamento é dizer: “Você não merece existir. Não há lugar para você aqui”. E, lamentavelmente, um número crescente de opositores do complementarismo está optando por passar da crítica diretamente para o cancelamento. De fato, muitos críticos mais atuais e mais jovens tendem a condenar todas as formas de complementarismo — em quaisquer tempos e lugares — como algo intrinsecamente abusivo e intolerável.

Compartilho do lamento expressado por muitos desses irmãos e irmãs. Lamento que a teologia complementarista tenha sido mal utilizada e distorcida por aqueles que se intitulam seus proponentes, em profundo detrimento e prejuízo de outros, principalmente das mulheres. Em oração, anseio por arrependimento e por uma repactuação com aquilo que, segundo estou convencida, é o ensino biblicamente fiel e frutífero da complementaridade entre homens e mulheres.

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No entanto, muitos agora veem o conceito de complementarismo como fundamentalmente incapaz de ser algo que não seja prejudicial às mulheres, de forma que não há lugar para ele na igreja contemporânea. Todavia, isso significa que não há lugar na igreja para mulheres que, como eu, são complementaristas.

Tenho doutorado em teologia e uma vasta experiência em liderança ministerial, além do respeito e do apoio de inúmeros colegas homens, que também são complementaristas. Quando busco apresentar minha própria experiência e minhas credenciais como prova de que o complementarismo é, de fato, capaz de enaltecer e honrar as mulheres, sou confrontada com a afirmação de que é impossível que o complementarismo tenha gerado tais resultados positivos e que, portanto, não devo de fato ser complementarista.

Como é possível que o complementarismo tenha um futuro significativo, quando seus oponentes argumentam que ele sequer deveria existir no presente?

No entanto, o cancelamento não é a única coisa que ameaça o futuro do complementarismo. Seu arcabouço teológico também está sendo cooptado por aqueles que sustentam uma visão muito mais restritiva sobre relacionamentos e papéis de gênero, com o intuito de eliminar quaisquer diferenças entre o complementarismo e o patriarcalismo (o domínio social dos homens). Mas a teologia complementarista não é a mesma coisa que a ideologia patriarcal. Aqueles de nós que estão comprometidos com os princípios teológicos definidores do complementarismo conseguem detectar as diferenças de imediato.

Escrito em 1987, o documento fundante do complementarismo — a Declaração de Danvers —insiste na igualdade ontológica entre homens e mulheres. Ele também reconhece a existência de distinções bíblicas e apresenta o ensino da Bíblia sobre a forma piedosa como essas distinções se expressam no lar e na igreja. Ele chama as mulheres a exercerem a inteligência que lhes foi dada por Deus, a não serem subservientes e a proativamente tornarem a “graça de Deus conhecida em palavras e ações”.

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Isso está em direto contraste com aqueles que dizem que homens e mulheres são diferentes em sua essência, que estendem a liderança masculina para além do casamento e da igreja, alcançando todas as áreas da sociedade, que afirmam que não há lugar para mulheres nos estudos teológicos (ou até mesmo na educação superior de forma geral), que incentivam os maridos a determinarem quais livros cristãos permitirão ou não que suas esposas leiam e que sugerem que não há ministério legítimo para as mulheres fora do lar. Isso não é complementarismo.

Para ser justa, muitos defensores do patriarcado reconhecem isso. Na visão deles, o complementarismo é excessivamente passivo, não vai longe o bastante. No entanto, apesar dessa percepção, o complementarismo está cada vez mais sendo cooptado por essa ideologia distorcida e repressora.

Quando não há distinção pública que seja reconhecida entre esses dois pontos de vista contrastantes, como o complementarismo pode se afirmar em seus próprios termos? Como pode continuar a ter um significado genuíno no futuro?

Além do cancelamento e da apropriação por elementos de fora, a terceira e provavelmente maior ameaça presente ao futuro do complementarismo é a canibalização interna.

Ela ocorre quando seus adeptos insistem em redefinir o complementarismo para além dos princípios teológicos fundacionais da Declaração de Danvers. Certamente, diferentes indivíduos, igrejas e ministérios chegarão a diferentes conclusões sobre a aplicação desses princípios.

No entanto, o perigo da autodestruição se apresenta quando tais interpretações são definidas como a única forma fiel de complementarismo. Isso ocorre quando não se dá espaço para conclusões diferentes, ainda que estejam fundamentadas nas afirmações teológicas definidoras do complementarismo e sejam consistentes com estas.

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A canibalização também acontece quando os que se intitulam complementaristas refutam com avidez o menor indício de pensamento feminista e, ao mesmo tempo, aparentemente se contentam em ignorar a misoginia evidente. Recentemente, acompanhei um tweet de uma mulher que se identificava como feminista cristã ser alvo de um ataque agressivo por certos setores complementaristas. Ao mesmo tempo, um vídeo que viralizou, no qual era dito que as mulheres são biologicamente menos capazes de pensar racionalmente do que os homens, foi recebido com um silêncio praticamente indiferente pelo mesmo grupo.

Quando nós, complementaristas, somos seletivos sobre os princípios bíblicos que vamos ou não defender, participamos de nossa própria destruição. Como pode haver um futuro para o complementarismo se nós, seus adeptos, não defendermos de forma abrangente e consistente aquilo em que afirmamos acreditar?

Não posso dizer com certeza se há futuro para o complementarismo da forma como o conhecemos. No entanto, acredito que ele só terá um futuro, se os cristãos complementaristas estiverem dispostos a demonstrar, de forma consistente, tanto em palavras quanto em ações, que estão errados aqueles que julgam o complementarismo (e os complementaristas) incapaz de produzir bons frutos do evangelho. Creio ainda que ele só terá um futuro se estivermos dispostos a denunciar implacavelmente ensinamentos não bíblicos e misóginos sobre homens e mulheres; e se estivermos dispostos a assumir a responsabilidade por nossos princípios teológicos, tanto nos recusando a ir além deles quanto nos contentando com nada menos do que eles.

Se o complementarismo tiver um futuro divinamente designado, isso exigirá que tanto seus adeptos masculinos quanto femininos invistam proativamente nesse futuro, colaborando em uma parceria complementar e genuína uns com os outros. Aí reside o desafio, mas também a oportunidade: modelar o que realmente significa o fato de Deus ter criado homens e mulheres para que, juntos, sejam portadores da sua imagem.

Temos a chance de reiterar o papel central que Deus tem se agradado que as mulheres desempenhem no desenrolar da história das Escrituras (como em Lucas 24.1-12) e de desempenhar o tipo de parceria ministerial maravilhosa entre homens e mulheres que vemos em Romanos 16.

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E temos a oportunidade de imitar e, assim, honrar nosso Salvador, que sempre tratou as mulheres com imensa dignidade e respeito, que as chamou a encontrar vida abundante nele e que as exortou a convidar outros a fazerem o mesmo.

Danielle Treweek é autora de The Meaning of Singleness: Retrieving an Eschatological Vision for the Contemporary Church [O significado da solteirice: resgatando uma visão escatológica para a igreja contemporânea] e oficial de pesquisa diocesana da Diocese Anglicana de Sydney.

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