Este artigo foi adaptado da newsletter de Russell Moore. Inscreva -se aqui.

O presidente russo Vladimir Putin assassinou outro cristão esta semana. Foi apenas mais um dia no suposto projeto de Putin de proteger “o Ocidente cristão” da impiedade. Afinal, como eles dizem, não se pode criar um império nacionalista cristão sem matar algumas pessoas.

Antes que o mundo esqueça o cadáver de Alexei Navalny em algum compartimento abaixo de zero de uma colônia penal no Ártico, devemos olhar para ele — especialmente aqueles de nós que seguimos a Jesus Cristo — para entender o que realmente é coragem moral.

Navalny foi talvez o dissidente mais reconhecidamente anti-Putin do mundo, e é agora um dos muitos inimigos de Putin a acabar “repentinamente morto”. Ele sobreviveu a um envenenamento, em 2020, recuperou-se na Europa e, finalmente, regressou à sua terra natal, apesar de saber o que iria enfrentar. Quando falava de sua dissidência e de sua disposição para suportar as consequências, Navalny repetidamente fazia referência a sua profissão de fé cristã. Emily Belz, minha colega na Christianity Today, teve acesso a uma transcrição do julgamento de 2021, em Meduza, na qual Navalny explica, em termos surpreendentemente bíblicos, o que significa alguém sofrer pelas próprias crenças.

“O fato é que sou cristão, o que normalmente me coloca na posição de objeto constante de ridículo na Fundação Anticorrupção, porque a maior parte dos nossos funcionários é composta de ateus, sendo que eu próprio já fui um ateu bem militante”, disse Navalny (conforme tradução feita pelo Google Translate). “Mas agora sou crente e isso ajuda muito em minhas atividades, pois tudo fica muito, muito mais fácil.”

“Há menos dilemas na minha vida, porque tenho um livro em que, geralmente, está escrito, de forma mais ou menos clara, quais atitudes devo tomar em cada situação”, explicava ele. “Nem sempre é fácil seguir este livro, é claro, mas estou realmente tentando.”

Navalny disse especificamente que era inspirado pelas palavras de Jesus: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão satisfeitos” (Mateus 5.6, NASB).

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“Sempre pensei que este preceito específico é mais ou menos uma instrução para agir”, disse Navalny. “E então, embora certamente eu não goste muito do lugar onde estou, não me arrependo de ter voltado [para meu país] nem do que estou fazendo. Estou em paz, porque fiz a coisa certa.”

“Pelo contrário, sinto uma verdadeira satisfação”, disse ele. “Pois, em um momento difícil, agi conforme as instruções e não traí o preceito.”

Essas palavras podem parecer um pouco fáceis demais. Afinal — poderia replicar algum incrédulo —, a maioria das pessoas no movimento pró-democracia e antitirania, do qual Navalny fazia parte, não acreditava, de fato, “nas instruções” das Escrituras. E o próprio Putin é apoiado por líderes-chave da Igreja Ortodoxa Russa, onde alguns estão dispostos — tanto quanto qualquer profeta da corte já esteve — a batizar o seu assassinato com a linguagem da virtude cristã e da civilização cristã. (Embora também existam exemplos de dissidência fiel.)

Mas essa reação não entende o que Navalny queria dizer. Ele não estava dizendo que cristãos são corajosos e que incrédulos não são. Há amplas evidências em contrário —na Rússia e também em outros lugares — que poriam tais noções para correr.

Navalny reconhecia, no entanto, que o fascínio da covardia moral, quando enfrentado com coragem, significa ficar sozinho. A consciência sempre pode se assegurar de que ficar quieto neste momento é a coisa certa. Navalny reconhecia o terror presente na ideia de ser deixado de fora de um campo de pertencimento — na ideia de ser rotulado como traidor por seus compatriotas e como herege por seus irmãos religiosos.

Resistir à atração dessa turba requer uma motivação diferente de uma chance de “sucesso” político melhor que o de sempre. Navalny reconhecia que é preciso, como disse certa vez o missionário evangélico Jim Elliot, abraçar a “estranheza”.

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“Para uma pessoa dos tempos de hoje, todo esse preceito — ‘bem-aventurados’, ‘os que têm fome e sede de justiça’, ‘porque serão satisfeitos’ — soa, evidentemente, muito pomposo”, dizia Navalny. “Soa um pouco estranho, para ser honesto.”

“Ora, falando francamente, as pessoas que dizem essas coisas deviam parecer malucas”, reconhecia ele. “Pessoas malucas, estranhas, sentadas ali na cela, com os cabelos desgrenhados e tentando se animar com alguma coisa, embora sejam sós, solitárias, pois ninguém precisa delas.”

“E esta é a coisa mais importante que o nosso governo e todo o sistema estão tentando dizer a essas pessoas: você está sozinho”, continuou ele. “Você é um solitário. Primeiro é importante intimidar; depois, provar que você está sozinho.”

Com isso, Navalny não só identificou os próprios motivos para a estranheza consciente, mas também contradisse a própria natureza da concepção putinista de cristianismo. Nesse regime, ser “cristão” é ser russo (ou ser o equivalente local de-sangue-e-solo, qualquer que seja ele). Ser “cristão” é ser uma pessoa “normal” — que não se dispõe a sair da linha, a expor a própria consciência a qualquer pensamento que possa lhe trazer dificuldades.

Após o assassinato de Navalny, a The Free Presspublicou cartas trocadas entre Navalny e Natan Sharansky, famoso ex-dissidente soviético que cumpriu pena na mesma colônia penal do Ártico, durante alguns dos anos mais perigosos do regime comunista. Passagens bíblicas são citadas do começo ao fim das cartas, e há inclusive uma brincadeira de Navalny sobre “onde mais passar a Semana Santa”, senão no complexo prisional que o homem mais velho chamava de “alma mater”.

Esta era a raiz, creio eu, da coragem moral de Navalny, da sua disposição de ficar sozinho, da sua prontidão em morrer. A questão não é apenas que ele sabia alguns versículos da Bíblia; o patriarca da Igreja Ortodoxa Russa, que é apoiador de Putin, sem dúvida sabe muito mais. A questão é a maneira como ele parecia conhecer as Escrituras. Ele parecia reconhecer não só as meras “instruções” de Jesus sobre ter fome e sede de justiça, sobre ser abençoado na perseguição, mas reconhecia também a história que estava por trás e em volta dessas instruções. Ele sabia que tais palavras pareciam estranhas. E sabia que eles pareciam loucos.

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Na introdução à sua coleção de poemas sobre a alegria, Christian Wiman observa que os primeiros ouvintes da mensagem do Novo Testamento, ofendidos pela estranheza do que ouviam, “poderiam muito bem ter voltado para casa, passando por fileiras de cadáveres crucificados, destinados especialmente a erradicar todas as causas de qualquer esperança ou alegria insurreicionista.” A estranheza era o ponto. Ninguém pode de fato ouvir o que Jesus está dizendo, quando chama os esquecidos, os perseguidos, os pobres e os injuriados de “bem-aventurados”, a menos que entendamos por que sua própria família pensava que ele estava “fora de si” (Marcos 3.21).

Provavelmente, foi por isso que Navalny reconheceu com tamanha clareza os métodos do regime de Putin para fazer com que os dissidentes se sentissem estranhos, loucos e sozinhos: Navalny já tinha visto isso antes, com um Império Romano que fazia a mesma coisa usando cruzes.

Aqueles que têm coragem moral — sejam eles de todas as religiões, sejam eles pessoas sem fé — têm motivações de todos os tipos para as suas convicções. Mas — seja qual for a motivação — não se pode manter a coragem moral se não estiver disposto a ser afastado de tudo o que chamamos “minha casa”, daqueles a quem chamamos “meu povo”. Essa é a alegre ironia: ninguém jamais está sozinho, quando faz parte de uma história maior, quando pertence a um corpo maior.

A nuvem de testemunhas inclui Elias e Jeremias, Pedro e Paulo, Máximo e Bonhoeffer, e inúmeros outros que morreram aparentemente abandonados, que pareciam loucos em sua época (Hebreus 12.1). É de pessoas como estas — e não de bispos “cristãos alemães” do Reich ou do patriarcado Ortodoxo que apoia Putin — que nasce a próxima geração da nossa fé.

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O objetivo da “fome” e da “sede” é que a pessoa seja levada a ver que algo está faltando — que tudo o que é oferecido para satisfazê-la não é suficiente. O próprio apetite por tais coisas é um sinal de que aquilo de que se tem fome e sede, na realidade, está lá [no outro mundo].

Uma pessoa pode ver isso, às vezes, até mesmo de um gulag (campo de concentração russo). Isso é estranho. Isso é loucura. Mas é isso que ao menos uma Pessoa que conheço chamaria de “bem-aventurados”.

Russell Moore é o editor-chefe da Christianity Today e lidera o Projeto de Teologia Pública.

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