Nota da edição da CT em português: este artigo foi produzido originalmente em inglês, no período da pandemia da COVID-19. Acreditamos, porém, que ele traz ensinamentos válidos para a realidade atual.

Seguir o calendário litúrgico é como participar de um teatro imersivo. Por meio de jejuns, banquetes, ritos e rituais, entramos na história de Jesus. No Advento, nos dedicamos a ansiar e a esperar juntos pela vinda do Rei. No Natal, colocamos bebês em manjedouras improvisadas e vivenciamos a Encarnação. Durante a Quaresma, colocamos cinzas na testa e nos lembramos do pecado e da morte. Tudo isso leva ao grande momento: o domingo de Páscoa.

Para os cristãos, é como um campeonato mundial de futebol, o crescendo de uma sinfonia, o clímax de uma peça. É aquilo pelo qual esperamos o ano todo, sentados na pontinha da cadeira. Mas este ano, por causa da pandemia: nada. O jogo foi cancelado. As trompas [da orquestra] foram embora bem no meio do concerto. O teatro pegou fogo no terceiro ato.

Como sacerdotisa, isso me parece incrivelmente insatisfatório. Claro, transmitiremos os cultos ao vivo. A Palavra será proclamada. Mas não é a mesma coisa. Algo claramente se perde.

No entanto, permanece o fato sólido, concreto de que não foram os cristãos que criaram a Páscoa, por meio das músicas de adoração e do calendário litúrgico. Jesus ressuscitou dos mortos e, mesmo que isso nunca fosse reconhecido em massa, continuaria sendo o ponto fixo em torno do qual o próprio tempo gira. A verdade da Ressurreição é indômita e livre. Ela nos possui, muito mais do que jamais poderíamos possuí-la, e vive alegremente, sem precisar de nós, nunca se curvando às nossas opiniões sobre ela. Se as alegações do cristianismo são verdadeiras, elas são verdadeiras independentemente de mim. Em um dia qualquer, a minha crença fervorosa ou o meu profundo ceticismo não vai alterar em nada essa realidade.

Tanto crentes quanto céticos geralmente abordam a história cristã como se o principal valor dela fosse pessoal, subjetivo e autoexpressivo. Chegamos à fé principalmente pela forma como ela nos conforta, nos ajuda a lidar com uma situação ou nos dá um senso de pertencimento. Ainda que de forma sutil, reduzimos a Ressurreição a um símbolo ou a uma metáfora. A Páscoa é apenas uma tradição inspiradora, uma celebração de renascimento e vida nova, que nos chama para uma melhor versão de nós mesmos e ajuda a dar sentido à nossa vida.

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Mas as realidades que enfrentamos na pandemia global — com hospitais e necrotérios sobrecarregados, a economia global em colapso e a terrível fragilidade de nossas vidas — devem acabar com qualquer sentimentalismo em relação à Ressurreição. Tomando emprestadas as palavras de Flannery O'Connor, “Se for [apenas] um símbolo, que vá para o inferno”.

Os riscos não poderiam ser maiores. À medida que um vírus mortal se espalha pelo mundo, trazendo caos, destruição e morte, fica dolorosamente claro que a Ressurreição é toda a esperança que o mundo tem — é o próprio centro da realidade — ou o cristianismo não valeria o nosso tempo.

“Não zombemos de Deus com metáforas, analogias, desvios, transcendência; ou fazendo do evento uma parábola, um sinal pintado na credulidade desbotada de eras anteriores”, escreve John Updike, em seu poema “Seven Stanzas at Easter” [Sete estrofes sobre a Páscoa]. Se a “dissolução das células de Jesus não se reverter, e as moléculas [não] se agruparem novamente, e os aminoácidos [não] se reavivarem, a Igreja cairá".

Sou cristã hoje não porque isso responda a todas as minhas perguntas sobre o mundo ou sobre nosso sofrimento atual. Isso não acontece. Também não sou cristã por achar que [o cristianismo] seja uma ordem moral boa e coerente, na qual me baseio para viver minha vida. Também não é por eu ter crescido dessa forma ou por ter um certo carinho por flanelógrafos e hinários. E não é porque ele motiva a justiça ou porque me ajuda a saber como votar. Sou cristã porque acredito na Ressurreição. Se ela não for verdade, que vá tudo para o inferno.

Em contrapartida, se Jesus de fato voltou dos mortos em uma calma manhã de domingo, há cerca de 2.000 anos, então, tudo mudou — nossas crenças, nossa ética, nossa política, nosso tempo, nossos relacionamentos. Se é verdade, então, a ressurreição de Jesus é o fato mais determinante do universo, é o ponto central da história. A Ressurreição é, em última análise, mais verdadeira e mais duradoura do que a morte ou a destruição, do que a violência ou os vírus. É mais verdadeira também do que a nossa celebração dela, por mais bela que seja, por mais minguada que seja.

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Naquela manhã da história, quando Jesus ressuscitou, não havia expectativa de uma ressurreição. Não houve fanfarras. Nenhuma igreja se reuniu com cânticos de triunfo, nenhum sino foi tocado, nada. Umas poucas mulheres saíram para cuidar do corpo morto de Jesus. Seus discípulos, uns “zés-ninguéns”, estavam abatidos, perdidos na tristeza e com medo. O restante de Jerusalém e do mundo em geral haviam seguido em frente. O sol nasceu. As pessoas foram cuidar de seus afazeres, colher grãos e buscar água no poço. Começaram a tomar o café da manhã.

Todo o cosmos fora alterado, e isso foi quase totalmente ignorado.

Este domingo de Páscoa na pandemia também será tranquilo. Quase 80% dos americanos estão sendo obrigados a ficar em casa, e continuarão assim, durante a maior parte dos 50 dias que vão da Páscoa até o dia da ascensão de Jesus. Mas, no final, o que fez a manhã de Páscoa ser importante nunca foram os santuários lotados, nunca foram os hinos ou as celebrações, os rituais ou os ritos. Assim como a quietude daquela primeira Páscoa não determinou se a pedra do sepulcro rolaria ou não, as portas trancadas de nossas igrejas locais [durante a pandemia] também não determinam isso.

O fato mais verdadeiro do universo nesta Páscoa não é o número de mortos, os santuários vazios ou os hospitais superlotados. O fato mais verdadeiro do universo é o sepulcro vazio. A Ressurreição é a única prova de que o amor triunfa sobre a morte, de que a fraqueza prevalece sobre a força e de que a beleza supera as cinzas. Se Jesus ressuscitou na história real, com toda a palpabilidade da carne, dos dedos, dos ossos e do sangue, há esperança de que nosso luto será consolado e de que a morte não terá a palavra final.

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Tish Harrison Warren é sacerdotisa da Igreja Anglicana na América do Norte, membro do The Pelican Project e escritora residente na Church of the Ascension, em Pittsburgh, Pensilvânia. É autora de Liturgy of the Ordinarye colaboradora no próximo livroUncommon Ground: Living Faithfully in a World of Difference.

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